Não é, certamente, por um centésimo de segundo que o agá de um Homem passa de maiúsculo a minúsculo. Não é justo que se esqueça o nome de Robert Metcalfe e, no entanto, ele raramente é recordado. Aliás, quem é que sabe, assim de repente, quem foi Robert Metcalfe?
Nos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, foi a sombra de Jesse Owens nos 100 metros planos. Ganhou a medalha de prata debaixo do focinho asqueroso de Adolf Hitler, exatamente com menos um centésimo de segundo do que Jesse (10,3 contra 10,4).
O homem do bigodinho ridículo teve de esperar mais três centésimos de segundo para ver chegar o grande representante da raça ariana, Erich Borchmeyer, o alemão que viveu com o peso de se ver batido por dois negros sob a bandeira da suástica, tendo posto fim ao sofrimento e ao desprezo a que foi votado, suicidando-se já no fim da vida, com 95 anos.
Metcalf tinha sete anos quando foi arrastado de Atlanta para Chicago pela Grande Migração que levou mais de seis milhões de americanos a fugir da segregação racial do sul. Estudou na Tilden Tech High School e corria, corria, corria sempre e cada vez mais depressa. «O meu treinador disse-me que, por eu ser preto, tinha de dar um dia de avanço ao mais forte dos meus adversários», contou. «Então trabalhei como um louco para deixar esse dia inteiro para trás». E assim se tornou o primeiro estudante-atleta negro da sua universidade, algo que lhe valeu uma bolsa para se transferir para a Marquette University de Milwaulkee, em 1930. Era como se conseguisse fugir do fundo do poço dos negros.
Dois anos mais tarde, fazia parte da equipa olímpica dos Estados Unidos que participou nos Jogos de Los Angeles. A América estava em Carne Viva, como diria o João Alves da Costa. A Grande Depressão esvaziou os bolsos de todos, e os de Robert nunca tinha estado particularmente cheios, nem pela metade. Para poder pagar a viagem para o sul da Califórnia, deitou mãos ao trabalho como criado de mesa da carruagem restaurante de uma companhia de caminhos de ferro. Juntou uns dólares. Foram suficientes. O sonho olímpico brilhou, finalmente, no seu horizonte sujo.
Não é certamente por um milésimo de segundo que o agá de um Homem passa de maiúsculo a minúsculo. Os 100 metros planos dos Jogos Olímpicos de Los Angeles foram dos mais renhidos da história das Olimpíadas. Dizem que Metcalfe ficou em segundo. Talvez tenha ficado. Ainda hoje ninguém poderá afirmá-lo com segurança científica nem, naquele tempo, havia aparelhos tão afinados que pudessem estabelecer diferenças de milésimos de segundo. Por isso, tudo ficou embrenhado numa nuvem de suponhamos. Eddie Tolan e Robert Metcalfe cruzaram a meta lado a lado como se fossem gémeos-siameses. Foi-lhes creditado o mesmo tempo: 10,3 segundos. Mas tinha de haver um vencedor e o vencedor foi Eddie. Para Metcalfe sobrou a prata. Era uma faísca do Destino.
Se ninguém se recorda (injustamente!) de Robert Metcalfe, ainda menos são os que se recordam de Eddie Tolan. A memória é mesmo assim, vai deixando cair camadas para serem substituídas por outras. Nos anos que se seguiram, Robert passou a ser tido, colegialmente, como o homem mais rápido do mundo. 10,3 segundos era o recorde mundial em 1932. Em agosto de 1933, em Budapeste, Metcalfe voltou a correr a distância em 10,3. Em setembro de 1934, em Nishinomiya, no Japão, fez o mesmo tempo. Dez dias mais tarde, ainda no Japão, em Darian, voltou a fazer 10.3. Repetia sem cessar o recorde do mundo, mas faltava o tal centésimo, ou mesmo milésimo, de segundo.
Em 1936, quando viajou até Berlim, para disputar os Jogos Olímpicos de Herr Hitler, Robert Metcalfe já era, além de um atleta extraordinário, professor de Ciência Política na University of Southern California, em Los Angeles. Defrontara Jesse Owens por várias vezes, em torneios e campeonatos disputados nos Estados Unidos, e saíra sempre vencedor. Vira Owens bater o recorde do mundo, fazendo um tempo de 10,2 nos quartos-de-final da prova, mas logo a seguir o recorde foi anulado por via do vento que se fazia sentir.
O dia 3 de agosto de 1936 seria, por completo, o dia de Jesse Owens. Robert Metcalfe falhou a passada aos 30 metros e foi obrigado a perseguir Jesse nos 70 metros que faltavam até à meta. Por um centésimo de segundo, não repetiu os 10,3 que já cumprira por mais de meia dúzia de vezes. Foi Owens que ficou nos 10,3. Para Metcalfe, 10,4.
Robert acabaria por levar o ouro para casa ao vencer a estafeta de 4X100, juntamente com Jesse Owens, Foy Draper e Frank Wykoff, mum tempo de 39,8, que se manteve recorde do mundo por 10 anos. Vinha aí a II Grande Guerra. O primeiro-tenente Robert Metcalfe não faltou à chamada das trincheiras.