Querida avó,
Fui ao Auditório do Casino do Estoril ver o belíssimo espetáculo O Sangue das Palavras. Os irmãos Feist, os teus meninos, tiveram a belíssima ideia de homenagear, desta forma, Ary dos Santos.
Tenho uma certa “inveja” por pessoas como Ary dos Santos terem feito parte do teu ciclo de amigos mais próximo.
Durante a minha adolescência, foi uma pessoa por quem eu sentia grande admiração cada vez que o via, e ouvia, a recitar poesia na televisão.
Apesar de vir de uma família aristocrática, sempre defendeu os ideais comunistas e as classes mais desfavorecidas. Incompatibilizou-se com a família, e rompeu com os padrões conservadores da sociedade. Provavelmente, algumas das muitas razões que vos uniram.
Brilhante a ideia dos Feist em trazerem as palavras de Ary para este espetáculo.
As letras de Ary estão imortalizadas em algumas músicas que ouvimos da Simone de Oliveira, do Carlos do Carmo, do Fernando Tordo, e tantos outros. No entanto, nunca é demais serem recordadas pelas gerações mais velhas e apresentadas aos mais novos.
É precisamente a forma como começa o espetáculo. A imaginar se Ary dos Santos fosse vivo.
Tu que foste amiga dele, e também te manifestas tanto através das redes sociais, como imaginas o Ary com 86 anos, a viver no século 21, a fazer publicações e comentários no Facebook?
O que talvez muitos não sabem, ou não se recordem, é que Ary dos Santos escreveu uma letra inspirada na tua relação com o Mário Castrim, e que o Carlos do Carmo deu voz a essas palavras, e que palavras, O Sangue das Palavras que jamais devem ser silenciadas!
Como tantas vezes ouvi Ary dos Santos vociferar «Poeta castrado, NÃO!».
Assim que vieres a Lisboa, agarro em ti e levo-te ao Auditório para veres o espetáculo.
Vamos cedo para jantarmos no Casino Estoril, no Bistrô.
Atenção que termina já no dia 27 de março, por sinal Dia do Teatro.
Bjs
Querido neto,
O teu texto fez-me recordar tantas coisas… Antes de mais “os meus meninos”, como tu dizes e bem. Os irmãos Feist. Eu podia ter sido mãe deles… É verdade… Eu e o Luís Feist – pai deles — fomos namorados no nosso tempo na Faculdade de Letras. Depois a vida deu muitas voltas e deixámos de nos ver. Mas ficámos sempre muito amigos. Lembro-me de, no dia do enterro (morreu tão novo…) o seu irmão Pedro me dizer «ele gostava muito de si».
Ele, a mulher (a locutora Manuela Paulino, que também morreu muito nova) e os filhos – o Nuno e o Henrique – viveram algum tempo em Londres. Quando regressaram, voltei a dar-me muito com eles – e pronto, daí ficaram “os meus meninos”.
E agora vamos ao Zé Carlos. Ou seja, José Carlos Ary dos Santos. Eu era muito amiga dele. Ele vivia na Rua da Saudade (extraordinário nome de rua para um poeta!) e hoje tem uma rua com o seu nome na freguesia de Benfica.
Eu ia muitas vezes a casa dele. Era uma maravilha ouvi-lo recitar! O Ary fazia tudo bem!
Sabes que ele também foi publicitário?
“Sagres, a sede que se deseja…”
“Minha lã, meu amor…”,da Woolmark.
E muitos outros de que agora não me lembro.
Ele conhecia muito bem a minha história (complicada…) com o Mário Castrim… Sabia que eu ia ter com ele à tarde, a um café do Bairro Alto, mas que às vezes não era possível… E um dia, lá na Rua da Saudade, deu-me um papel e disse: «É para ti e para o Mário».
Era um poema lindíssimo, chamado “Estrela da Tarde”. Alguns dias depois disse-me «o chato do Fernando Tordo quer uma cantiga com uma letra minha…E meteu-se-lhe na cabeça que tem de ter a palavra “tarde…”». Fez uma pausa e acrescentou: «Posso dar-lhe o poema que fiz para ti?».
Claro que lhe disse que sim, e o Carlos do Carmo cantava-a maravilhosamente.
E pronto.
Antes do dia 27 de março levas a avó ao Auditório do Casino para ver O Sangue das Palavras.
Sim, jantamos no Bistrô para te contar mais coisas.
Beijos