‘Acho triste haver peças fabulosas a não serem valorizadas como deviam’

Os grandes colecionadores não estão sensibilizados para a arte antiga, explica o presidente da Associação Portuguesa dos Antiquários, o que provoca uma subvalorização das obras.

Dois dias antes da venda da pintura de Chardin em Paris, a Christie’s anunciou que em maio será leiloado um dos quatro retratos que Andy Warhol fez de Marilyn Monroe após a morte da atriz, Shot Sage Blue Marilyn, de 1964. A obra poderá atingir 200 milhões de dólares, avançou a leiloeira. Ou seja, quase dez vezes mais do que a pintura de Chardin. 

A que se deve esta discrepância? «Os preços das obras de arte, como os preços de praticamente tudo dependem dos preços que os eventuais compradores estão prontos a pagar e isso depende do que eles ouvem dizer, do que veem publicado, do que lhes parece ser mais sensacional», explica António Homem, colecionador e galerista sediado em Nova Iorque. «Não há sempre uma relação entre a importância de uma obra e o preço que ela pode atingir. De resto penso que isto se passa com tudo. Não penso que sejam sempre os melhores livros que sejam os mais lidos e mais conhecidos pelo grande público».

Em entrevista ao Nascer do SOL, Carlos Bessa Pereira, presidente da Associação Portuguesa dos Antiquários, também dá pistas que ajudam a explicar como se chega a estes valores tão díspares.

Diríamos que a arte antiga, até pelo seu interesse histórico, tem um valor superior à arte contemporânea. E, no entanto, verifica-se o oposto. Porque ficam os valores da pintura antiga tão aquém dos da contemporânea?Contemporânea e moderna. Devo dizer que este valor para o Chardin é um valor muito alto quando comparado com aquilo a que temos assistido nos últimos três, quatro anos, com os preços que obras de arte dos séculos XVI, XVII e XVIII normalmente alcançam em leilão. Uma coisa paradigmática, que me deixa sempre estupefacto, é que obras de mestres importantes e interessantes dos século XV e XVI muitas vezes são vendidas na casa dos 30, 40, 50 mil euros. E se passarmos para os pintores ‘médios’ – os antigos e os contemporâneos – esta distância é muito mais acentuada.

O facto de Chardin ser elogiado por Diderot, Proust, os irmãos Goncourt, não o valoriza?
Quando você pega numa amostra aleatória de cem pessoas com um mínimo de cultura, se perguntar se já ouviram falar do Proust, provavelmente eles titubeiam, se perguntar se já ouviram falar do Andy Warhol provavelmente todos eles põem o dedo no ar.

Estaremos então perante um fenómeno de moda?
Aquilo a que assistimos hoje é que o segmento mais significativo dos grandes compradores de arte no mundo está numa faixa etária entre os 40 e os 60 anos. São pessoas cujos referenciais visuais estão muito próximos da pintura moderna e contemporânea e estão muito pouco sensibilizados para as obras de arte clássicas. Portanto temos aqui uma primeira justificação. Que depois pode ser também atestada por aquela ideia do cool. Hoje é muito mais cool as pessoas dizerem que gostam de arte moderna e contemporânea do que dizerem que gostam de arte clássica. Esta é uma tendência geral no mundo, assistimos a isso com compradores chineses, europeus ou americanos. Na faixa dos Old Masters – a tal pintura clássica – o mercado é feito pelos especialistas, pelos colecionadores, enquanto no moderno e contemporâneo muita gente compra por investimento ou para decorar as casas. Estamos no nível em que uma pessoa pode gastar 50 milhões de euros para comprar um quadro para pendurar na sala, sem intuito colecionístico.

E acha que vai ser sempre assim?
Estes ciclos alteram-se. Aquilo que hoje é para nós uma pintura clássica na altura em que foi feita era uma pintura contemporânea e provavelmente as pessoas até olhariam com algumas dúvidas. O que acontece hoje é que as dúvidas deste olhar relativamente ao contemporâneo quase se dissiparam. As pessoas estão muito mais predispostas a aceitar um trabalho de arte contemporânea do que uma obra de arte clássica.

O que também é curioso, uma vez que a arte contemporânea nem sempre é muito fácil ou imediata para um leigo.
É verdade. A arte contemporânea tem uma carga conceptual muito forte que transfere um certo grau hermético para estas obras. Desde que Marcel Duchamp apresenta um urinol, os artistas têm esta capacidade quase magica de encontrarem uma pedra e por sua vontade transformar essa pedra numa obra de arte. Uma coisa que nos referenciais da arte clássica era impossível.

E pensa que é a arte antiga que está subvalorizada ou a arte moderna e contemporânea que está sobrevalorizada?
Diria que os Old Masters estão claramente subvalorizados. Sou um colecionador muito transversal, tanto compro arte clássica como compro arte moderna e contemporânea, e vejo interesse em ambas. Mas não deixo de ficar estupefacto com a possibilidade de comprar por 15 mil euros uma obra de 1480, que atravessou 500 anos de história, com um conjunto de vivências do domínio muitas vezes do extraordinário, quando esses mesmos 15 mil euros, no mercado internacional, são quase a porta de entrada para um artista que acabou de fazer a sua primeira exposição numa galeria qualquer em Paris ou Nova Iorque. E comprar um trabalho dele pelos ditos 15 mil euros não será propriamente fácil. Portanto acho que existe aqui um desencontro enorme e que certamente o tempo acabará por corrigir.

Poderá esta discrepância ter que ver com o facto de a arte antiga ser um investimento seguro, até porque já deu provas, mas a arte moderna e contemporânea permitir outra margem de valorização?
Eu punha as coisas de outra forma. O resultado final acaba por ser esse. Mas diria que a arte antiga está de tal modo subvalorizada que é impossível não ser um bom investimento no longo prazo. A arte contemporânea está de tal forma sobrevalorizada que será um risco maior. Mas uma coisa que também já aprendi ao longo dos anos é que não conseguimos lutar contra as forças do mercado.

São demasiado poderosas?
Exatamente. Por isso estou convencido de que nos próximos 20, 30 anos dificilmente estes referenciais se alterarão significativamente. Começa ainda assim a haver uma nova geração de colecionadores que têm uma abordagem mais transversal da arte, e que gostam de ter nas suas coleções duas ou três referências clássicas que depois harmonizam com pintura contemporânea. Isto a pouco e pouco irá criar uma nova moda, que fará com que as pessoas voltem a olhar para a pintura clássica.

E nota algum desalento ou desilusão entre os antiquários por a arte antiga não ser tão valorizada como devia?
Felizmente os antiquários têm uma capacidade de adaptação grande. Estão em contacto diário com o mercado, têm uma visão internacional, informam-se, e todas estas tendências são um pouco antecipadas. Os antiquários que acompanham as tendências do mercado fizeram a adaptação a esta nova realidade há bastante tempo. Agora, se me pergunta: ‘E não fica triste com isto?’ – não diria desalentado, diria triste. Sim, acho que é triste haver peças de mobiliário fabulosas do século XVIII, pinturas e esculturas extraordinárias, a não serem valorizadas como deviam.