No outono da sua longa vida, ao aproximar-se da barreira dos 60 anos, o pintor Jean-Baptiste-Simeon Chardin (1699-1779) abandonou as pequenas cenas do doméstico quotidiano – senhoras a tomar chá, criadas a lavar a roupa, mães a vestir os filhos – para se dedicar quase exclusivamente ao seu primeiro amor, a natureza-morta, um género com uma tradição que remontava aos frescos de Pompeia, mas que não gozava no século XVIII de tanto prestígio como as cenas de História, os temas da Bíblia e da mitologia ou mesmo a paisagem.
Apesar da aparente simplicidade, as suas composições denotavam um extremo requinte. E, embora retratassem coisas tão banais como frutos, pães ou utensílios de cozinha, Chardin fazia-o com tal esmero e capacidade de observação que estas telas emanam ainda hoje uma insuperável aura de tranquilidade e mistério.
No Salon de 1761 – a exposição oficial para artistas da Academia que se realizava desde 1667 por iniciativa do Cardeal Mazarino, e que a partir de 1737 adquiriu uma periodicidade anual – Chardin apresentou uma pequena tela de 38 por 46 cm que constitui a quinta-essência da sua arte. Raras vezes um criador terá conseguido com tanto sucesso transformar os pigmentos numa imagem de poesia pura como n’O Cesto de Morangos Silvestres.
Esta obra-prima da natureza-morta, elogiada pelos irmãos Goncourt no seu famoso Diário, na segunda metade do século XIX – altura em que críticos e artistas resgataram a obra de Chardin do esquecimento em que tinha caído após a sua morte –, foi leiloada na passada quarta-feira em Paris. Com uma estimativa de entre 12 e 15 milhões de euros, acabou por ser arrematada por 24 milhões (com comissões) pelo galerista de Nova Iorque Adam Williams, avançou o The Art Newspaper.
Descrito pela leiloeira Artcurial, promotora da venda, como «uma das mais importantes pinturas francesas do século XVIII ainda em mãos privadas» e um «ícone da pintura ocidental», O Cesto de Morangos Silvestres é considerado talvez o pináculo da obra de Chardin. Edmonde e Jules de Goncourt não se cansaram de elogiar as duas flores representadas no primeiro plano, tão delicadas que foram talvez a parte da tela que resistiu menos bem à passagem do tempo: «Estes dois cravos: não são mais do que uma fragmentação de azuis e brancos, uma espécie de mosaico de esmaltes prateados em relevo; recua um pouco, as flores saem da tela à medida que te afastas […] é esse o milagre da arte de Chardin; modelados na massa e na vizinhança dos seus contornos, desenhados com a sua própria luz, feitos por assim dizer da essência das suas cores, parecem destacar-se da tela e ganhar vida através de um espantoso jogo de óptica no espaço entre a pintura e o espectador».
Mas se os célebres diaristas franceses preferiram destacar os cravos brancos, a ‘estrela’ desta pintura é indubitavelmente o cone de morangos, que já foi comparado a uma pirâmide egípcia ou a um vulcão em miniatura. Os pequenos frutos amontoados, pontuados aqui e ali pelo verde dos pedúnculos, são uma autêntica ode à cor, uma celebração dos prazeres proporcionados pelos sentidos.
Em contraste, repousa à esquerda do quadro sobre a mesa de madeira um austero copo de vidro com água – incolor, inodora e insípida –, um objeto onde Chardin ostenta todo o seu virtuosismo, conseguindo representar um objeto de uma transparência perfeita, mas nem por isso menos concreto.
O sorriso da raia
Mas quem foi este artista admirado pelos seus contemporâneos, patrocinado pela czarina Catarina, a Grande, copiado por Cézanne e elogiado por Proust?
Jean-Baptiste-Siméon Chardin nasceu em Paris em 1699, filho de um marceneiro. Fez a sua formação como aprendiz de Pierre-Jacques Cazes – que conquistou o prestigiadíssimo Prix de Rome no ano em que Chardin nasceu, embora hoje seja quase desconhecido – e de Noël-Nicolas Coypel. Em 1724 tornou-se mestre da Academia de São Lucas, o que atesta a competência adquirida, mas seria quatro anos depois que daria que falar, quando apresentou na Académie Royale, a 25 de setembro de 1728 o quadro A Raia (hoje um dos pontos altos do Louvre).
Chardin teve a ousadia de representar o enorme peixe pendurado num gancho, com as vísceras à vista, e uma espécie de sorriso amargo desenhado na boca. Um gato aproxima-se sorrateiramente, quase de certeza atraído pelo aroma das ostras abertas.
O objeto representado «é repugnante, mas é a própria carne do peixe, a sua pele, o seu sangue», disse então Denis Diderot (1713-1784), o filósofo que esteve na origem da Enciclopédye. «Monsieur Pierre, dê uma boa olhadela a esta peça quando for para a Academia e aprenda, se puder, o segredo de conseguir evitar através do talento a repugnância de certas naturezas». E concluía: «Contaram-me que Greuze [outro pintor famoso da época], ao subir as escadas para o Salon e ver a peça de Chardin que acabo de descrever, olhou para ela e seguiu soltando um profundo suspiro. Este elogio é mais curto e vale mais do que o meu».
Quem também elogiou A Raia foi o escritor Marcel Proust (1871-1922), no estudo que dedicou ao pintor em 1895: «Sobre a mesa, as facas ativas, que vão direitas ao assunto, repousam em ociosidade ameaçadora e inofensiva. Mas acima de ti um estranho monstro, ainda fresco como o mar onde ondulava, uma raia suspensa, cuja visão mistura com o desejo da gula o curioso encanto da calmaria ou das tempestades do mar de que foi a formidável testemunha. […]
Está aberta e podemos admirar a beleza da sua arquitetura vasta e delicada, tingida de sangue vermelho, nervos azuis e músculos brancos, como a nave de uma catedral policromada. Ao lado dela, no abandono da morte, os peixes contorcem-se numa curva íngreme e desesperada, de bruços, com os olhos salientes. Depois um gato, sobrepondo a esse aquário a vida obscura de suas formas mais sábias e mais conscientes, o brilho dos seus olhos pousado na raia, manobra com lenta pressa o veludo das suas patas sobre as ostras levantadas e revela a prudência de seu caráter, a cobiça de seu palato e a temeridade de seu empreendimento».
A mais bela orelha da arte
Com esta proeza de criatividade, observação e domínio técnico absoluto, Chardin conquistou de imediato um lugar como membro da Académie Royale e a admiração dos seus pares. Paul Cézanne, já no século XX, seguiu o conselho de Diderot e copiou A Raia; Henri Matisse reconheceu que ia com frequência ao Louvre para estudar a sua técnica.
Mas, note-se, não foi de um dia para o outro que adquiriu a mestria ali demonstrada. «Chardin parecia duvidar de que pudesse haver educação mais longa e mais penosa do que do pintor, nem a de um médico, de um advogado ou de um professor da Sorbonne», registou Denis Diderot. «‘Aos sete ou oito anos’, dizia ele, ‘põem-te um porta-giz na mão. Começamos a desenhar, a partir de gravuras, olhos, bocas, narizes e orelhas, depois pés e mãos. As nossas costas passaram muito tempo curvadas sobre o bloco de desenho quando finalmente ficamos cara a cara com uma estátua de Hércules ou com o torso, e pouco sabes das lágrimas derramadas por causa de algum sátiro ou gladiador […]. Depois de dias sem fim e noites à luz da lanterna à frente da natureza imóvel e inanimada, somos apresentados à realidade viva, e de repente todo o trabalho dos anos anteriores parece esfumar-se; não estávamos mais perdidos da primeira vez que pegámos no lápis’».
Esta aprendizagem exigente e fastidiosa deu, no caso de Chardin, brilhantes resultados. Depois da natureza morta, virou-se para as cenas de interior, inspirado pela pintura holandesa do século XVII. O seu pincel transfigurou momentos comuns do quotidiano em algumas das mais belas imagens da época: um jovem a construir um castelo de cartas (em que uma gaveta entreaberta, no primeiro plano, cria um sentimento de curiosidade em relação ao que poderá conter); uma rapariga segurando uma raquete e um volante de badminton; uma mulher, acabada de chegar a casa, a pousar as compras na bancada da cozinha (de dentro do saco sai o que parecem ser pernas de frango); uma mãe a pôr a comida na mesa para os filhos.
Chardin queixava-se dos estudos da «natureza imóvel e inanimada», mas os seus quadros captam o encanto vida. O pintor britânico Lucien Freud dizia que A Jovem Preceptora, obra de 1737 que pertence à National Gallery de Londres, tinha «a mais bela orelha da arte».
Com o tempo, Chardin consolidou uma clientela de diplomatas, aristocratas e altos funcionários do Estado, obtendo por volta de 1750 a sua primeira encomenda régia. O quadro, apresentado em 1751 e intitulado O Órgão Canoro nunca chegou, porém, às mãos do monarca.
Até que, sem aviso, ainda nessa década, o pintor regressou à sua paixão pela natureza-morta. Os seus quadros já não eram agora complexos e variados como A Raia, mas sim composições depuradas de uns quantos objetos meticulosamente organizados. Chardin pôs toda a sua arte na reprodução exata das cores, brilhos e texturas.
Sobre um desses quadros, escreveu Diderot: «A jarra de porcelana é de porcelana; estas azeitonas estão de facto separadas do olho pela água em que as submerge; só temos de esticar a mão para tirar estes biscoitos e comê-los, abrir esta laranja de Sevilha e espremê-la, pegar no copo de vinho e bebê-lo, pegar nestas peças de fruta e descascá-las, deitar a mão a este patê e fatiá-lo. Aqui está alguém que compreende a harmonia das cores e a luz refletida. Oh, Chardin! Não é pigmento branco, encarnado ou preto que tu esmagas na paleta: é a própria substância dos objetos, é o ar e a luz que apanhas com a ponta do pincel e fixas na tela».
Jean-Baptiste-Siméon Chardin morreu, apropriadamente, no apartamento do Louvre que lhe tinha sido concedido pelo Rei. Mas não sei antes deixar dois célebres autorretratos a pastel, técnica que adoptou porque as tintas a óleo continham compostos tóxicos que lhe afetavam a saúde, em particular os olhos. Depois a sua obra caiu num longo e injusto esquecimento, até o século XIXvoltar a recuperá-lo. Num inquérito de um jornal em 1920, em que lhe era pedido que indicasse oito pinturas imperdíveis do Louvre, Proust nomeou três do autor do Cesto de Morangos Silvestres.