A elevada procura às urgências tem feito disparar os tempos de espera para doentes urgentes e agora a faltar apenas o dia de ontem para o balanço geral confirma-se que foi o mês de março com maior afluência às urgências no Serviço Nacional de Saúde de que há registos. Até dia 30, registaram-se 545 mil idas às urgências nos hospitais de todo o país, o que com os atendimentos de ontem levará o balanço para mais de 560 mil atendimentos.
São números atingidos noutros invernos nos picos de infeções respiratórias mas que são menos normais em março, marcado este ano por uma epidemia de gripe fora de época e mais doentes crónicos descompensados, como costuma acontecer no tempo frio.
Mas este não é o único valor recorde: segundo a monitorização diária dos serviços de urgência feita pelo Ministério da Saúde, que o i analisou, até dia 30 houve 27 393 casos em que os doentes acabaram por abandonar a urgência depois da admissão, tendo alta por abandono, indicador que inclui casos em que as pessoas se vão embora antes ou depois da triagem ou antes ou depois de serem vistos uma primeira vez, mas quando ainda não tinham o seu caso fechado. E em muitos casos esperas pela frente, já que um dos fatores associados na literatura ao abandono é o congestionamento dos serviços.
em alguns hospitais o equivalente a dois dias Pelo menos desde 2016, quando começa a ser discriminado este indicador na plataforma do Ministério da Saúde, não havia um mês com tantos casos, mesmo em alturas de maior afluência às urgências do que a que se registou agora. Ao todo, estes casos representaram este mês 5% das admissões nas urgências mas em alguns hospitais rondam 10%. Utilizando como exemplo dois hospitais centrais congestionados pela elevada procura, o Hospital de S. João, no Porto, e o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, foi este o cenário: no Hospital de Santa Maria, houve um total de 18 771 idas às urgências este mês, com 2118 altas por abandono (11,2%); no Hospital de São João, que regista a nível nacional o maior número de idas às urgências e confirmou ter batido em alguns dias o recorde dos últimos 13 anos, houve 23 001 atendimentos nas urgências e 1964 altas por abandono (8,5% das admissões). Nestes dois hospitais, o número de altas por abandono equivale a mais de dois dias de doentes admitidos nas urgências.
meios insuficientes Esta é uma realidade que convive com o elevado número de doentes não urgentes que procuram os serviços de urgência por comodidade ou por não haver alternativa disponível, problema crónico diagnosticado no SNS e que tem estado de novo na ordem do dia com o setor a pressionar o Governo para que avance com mudanças.
A plataforma do Ministério da Saúde permite também um balanço: em março, houve 239 467 episódios classificados como não urgentes (pulseiras brancas, azuis e maioritariamente verdes) na triagem feita pelos enfermeiros, 43,9% do total – uma percentagem em linha com o balanço final do ano passado, em que o peso destes casos voltou a aumentar depois de uma descida no primeiro ano da pandemia. Ao todo, são 8 mil idas evitáveis às urgências por dia. Mas se as também chamadas “falsas urgências” têm sido várias vezes diagnosticadas nos últimos anos, com alertas de que o termo pode passar ao lado do problema quando a população sente que não há alternativas, o indicador da alta por abandono, embora seja obrigatoriamente monitorizado nos hospitais, não tem sido escalpelizado, quer no que representam para os hospitais, quer para os doentes. Mas os relatos não são difíceis de encontrar, de pessoas que entram na urgência, vão à triagem e acabam por se vir embora horas depois por estarem à espera de ser vistas, a quem desiste de ficar já depois dessa etapa a aguardar por resultados de análises ou exames.
O i tentou perceber se o Ministério da Saúde tem alguma análise sobre esta realidade e se equaciona alguma medida face ao aumento destas situações, mas não foi possível ter resposta até ao fecho desta edição.
Online é possível encontrar dois trabalhos de investigação portugueses publicados nos últimos anos, com algumas pistas.
O mais recente foi publicado no ano passado por médicos do S. João e investigadores do Centro de Investigação em Tecnologia e Sistemas de Informação em Saúde, no Porto, focado no abandono de doentes que recorrem à urgência pediátrica. Após uma análise retrospetiva dos casos entre 2014 e 2016, concluíram que a maioria dos doentes que se foram embora não eram casos urgentes, considerando que campanhas de educação, plataformas de aconselhamento online e por telefone e melhorar o acesso aos cuidados de saúde primários podem otimizar o uso de serviços de saúde. “O reforço das equipas em momentos de grande afluência pode ajudar a diminuir a taxa de abandono”, lê-se nas conclusões do artigo publicado numa revista da especialidade. Dos casos em que houve abandono por parte de doentes urgentes (1,78% do total), 44% procuraram cuidados médicos nos cinco dias seguintes, 41% no privado, 40% de novo em hospitais públicos e 19% nos cuidados primários.
O segundo trabalho resulta de uma tese de mestrado de 2020. com uma retrospetiva destas situações no ano de 2018 no Centro Hospitalar Tondela-Viseu. A autora Paula Matos, da Escola Superior de Saúde de Viseu, concluiu que naquele ano houve uma taxa de abandono do serviço de urgência de 3,04%, tanto por doentes não urgentes como por doentes urgentes.
Em 1284 casos registados, 78,7% doentes chegaram a ser avaliados pela triagem e, destes, 39,6% foram classificados com a prioridade clínica de urgente (amarela) e 37,9% com prioridade pouco urgente (verde). O comportamento revelou-se ligeiramente mais comum em mulheres do que homens e na faixa etária dos 36-65 anos (46,4% do total de casos). Outra conclusão era que a maioria se tinha deslocado as urgências pelo próprio pé, havendo ainda assim 18% de casos em que os doentes tinham sido transportados pelo INEM.
Um um estudo empírico publicado em 2019 por uma equipa de Hong Kong analisa o comportamento dos doentes, considerando que tanto o congestionamento da urgência como a observação do serviço influenciam a perceção do doente sobre o tempo de espera. Concluíam que doentes com condições mais graves que entram numa urgência congestionada sentem-se inclinados para a abandonar mais cedo, com quem opta por esperar a ser menos sensível à perceção do tempo de espera. Antes da pandemia, em 2019, ano em que o SNS bateu o recorde de admissões nas urgências com mais de 6 milhões de episódios, houve 186 mil altas por abandono, 3% do total, com uma média de 15 500 casos por mês. Em janeiro, que costuma ser dos meses de mais pressão, houve 19 148 casos.