São fáceis de vislumbrar por quem passa habitualmente pelos Hospitais de Santa Maria e Amadora-Sintra. Instalados durante a pandemia, dois grandes parques de painéis solares, no caso do hospital no coração de Lisboa por cima de um estacionamento e no Amadora-Sintra na cobertura e espalhados pela colina nas traseiras, visíveis do IC19.
Estão agora prontos a ligar – nos últimos tempos só à espera de licenças, mas já com indicação no caso do Amadora-Sintra de que pode iniciar a 7 de abril. Quanto mais rápido melhor: como em todas as casas, o aumento dos custos com a energia fez soar alarmes nos últimos meses e a fatura nos hospitais, que chega aos sete dígitos, disparou.
Quando os painéis estiverem operacionais, começa uma nova etapa em que passam a ter pelo menos uma parte de geração própria, à conta do sol.
Nuno Jorge, engenheiro e diretor do Serviço de Instalações e Equipamentos do Centro Hospitalar Lisboa Norte, guia-nos numa visita pelo Hospital de Santa Maria para explicar o investimento que foi possível fazer nos últimos anos com financiamento do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR), um empreendimento com duas dimensões: diminuir a pegada ecológica de um hospital que é uma cidade dentro da cidade e ganhar eficiência em termos de custos.
É a maior reforma na infraestrutura do Santa Maria desde a inauguração do hospital em 1953. O parque de painéis solares com uma área de 4 mil m2 na cobertura de um estacionamento, o maior de Lisboa em área, é uma das medidas visíveis e no futuro a ideia é triplicar a área, cobrindo outras zonas de estacionamento.
No setor da Saúde, o projeto do Santa Maria foi o de maior monta aprovado no programa europeu, num total de 15,3 milhões de euros, 95% (14,5 milhões de euros) com financiamento comunitário e o restante investimento do Estado. Nunca é fácil: foi preciso esperar pelas autorizações das Finanças e ultrapassar toda a burocracia para o contrato assinado em 2017 avançar. As obras acabaram por ter lugar durante a pandemia e nos próximos meses ficará tudo concluído.
A mudança é significativa e para a pôr em imagens Nuno Jorge leva-nos a visitar as zonas do hospital que geralmente não são visíveis a doentes e visitantes.
«Costumo dizer que este hospital foi concebido para gastar energia. Havia a nova barragem de Castelo de Bode (começou a turbinar em 1951) e era tudo elétrico. O que temos estado a fazer é uma reconversão», explica o engenheiro que supervisiona tudo o que são instalações técnicas e equipamentos do hospital, desde a aquisição à manutenção. Água, luz, oxigénio, elevadores, portas, ecógrafos – é só imaginar.
Todos os dias há ocorrências a chegar ao departamento que se estende pelos pisos técnicos do hospital. Estamos no telhado do Santa Maria a ver lá em baixo os painéis a serem fustigados pelas poeiras do Saara quando toca o telefone com mais uma. Um dia assim não seria bom para a produção solar, mas viria a chuva lavar os painéis, um ciclo a que a equipa técnica do Santa Maria se irá agora habituar.
Outros capítulos ficam fechados. Com o financiamento do POSEUR, substituíram nos últimos meses para LED todas as lâmpadas que ainda eram das antigas – qualquer coisa como 12 mil em mais de 20 mil, depois de terem levado 15 anos a substituir aos poucos a primeira metade – e intervencionaram mais de 7 mil metros quadrados de janelas para as tornar mais eficientes, com caixilharia térmica. Dá quase um campo de futebol de janelas.
Foi reformulado o sistema de ar condicionado, com ‘chillers’, máquinas que arrefecem a água e cuja dissipação de calor será aproveitada para o novo sistema de aquecimento das águas do hospital. Aqui chegamos ao epicentro da transformação, apresenta-nos Nuno Jorge, ainda em obras e que deverá estar operacional em junho: o hospital que nas últimas seis décadas dependeu de termoacumuladores elétricos para aquecer a água que sai de cada uma das torneiras – 99 cilindros espalhados pelo edifício – passa a ter uma central térmica única para providenciar as águas frias e quentes para climatização e a produção de água quente sanitária. O que será conseguido por via de três fontes: o calor dos ‘chillers’, coletores térmicos instalados na cobertura da central e três caldeiras de gás natural. Ou seja, pelo menos o aproveitamento dos ‘chillers’ e de luz solar permitirá que parte da água seja aquecida sem custos adicionais em eletricidade.
Contas feitas, explica o engenheiro, a expectativa é que todas estas intervenções permitam reduzir em 30% o consumo de eletricidade no hospital. Cálculos que na situação atual ganham outra perspetiva: no ano passado, a conta da luz no Hospital de Santa Maria foi de 3 milhões de euros e este ano passaria os 7 milhões. Já sem contar com os primeiros meses do ano em que devido a atrasos nos procedimentos centralizados de compras, os hospitais tiveram de ir ao mercado livre, com a fatura a disparar 500% – no caso do Santa Maria, gastaram quase tanto em dois meses de eletricidade como em todo o ano passado. Aos valores atuais, estima conseguir uma poupança anual na casa dos 1,8 milhões de euros.
«Houve uma altura em que o Santa Maria consumia mais eletricidade do que toda a cidade de Santarém. Temos vindo a consumir cada vez menos mas somos o maior edifício público do país», resume Nuno Jorge, que acredita que a poupança começará a ser visível, embora nos próximos anos tenha de servir em parte para reembolsar o financiamento. O resultado será também um hospital mais eficiente, com a pegada ecológica a diminuir. Vão subir duas classes na eficiência energética, do nível D para o nível B. «É muito significativo. Naturalmente que nos preocupa a sustentabilidade, mas são investimentos elevados. São medidas que seriam importantes em todos os hospitais», sublinha, enquanto nos mostra o que implicou esta mudança das águas. Estamos em corredores estreitos, junto à morgue, onde foram instalados 30 quilómetros de novas tubagens por onde circulará a água, uma intervenção em plena pandemia em que chegou a haver alturas em que empresas manifestaram receios de ir trabalhar para os hospitais por causa da covid-19. E que altera os circuitos no hospital, com algum incómodo, mas que o engenheiro acredita que compensará.
Na volta ao passeio pelas artérias do hospital, passamos pela sala de oxigénio, onde se viveu a maior pressão dos últimos anos no inverno de 2021, com os tanques a terem de ser enchidos várias vezes por mês perante débitos muito acima do normal nos doentes internados. Vamos depois ao coração, a sala de máquinas onde o hospital transforma a eletricidade que recebe em média tensão e onde existem dois geradores próprios para situações de falta de luz da rede, que garantem dois dias de autonomia. Já foram acionados este ano, durante 20 minutos de falha de energia, um dos pesadelos no serviço técnico porque além de limitar o abastecimento aos serviços críticos pode acabar por danificar aparelhos. «São situações que costumam acontecer uma ou duas vezes por ano», explica Nuno Jorge.
Projetos há muitos
No Amadora-Sintra, as voltas são as mesmas e o sentimento de que se deu um passo em frente no compromisso de maior eficiência energética que seria impossível sem financiamento europeu é partilhado por Filipe Chibante, diretor do Serviço de Instalações e Equipamentos do Hospital Professor Dr. Fernando Fonseca.
Também ali os painéis solares quase a arrancar são apenas uma das dimensões do empreendimento que conseguiram fazer com as verbas do POSEUR. O projeto do Amadora-Sintra ascende a 6 milhões de euros e foi a segunda maior candidatura individual aprovada no setor da saúde – ao todo, houve 27 projetos de hospitais do SNS financiados, no valor de 90 milhões de euros, revelam os registos do programa.
No Amadora-Sintra, a expectativa é também que o solar consiga garantir 30% do consumo nas horas de pico. Por ano, o hospital gastava em média 1,5 milhões de euros em eletricidade, o que com os valores de 2022 passa a quase 3 milhões de euros isto depois das faturas recorde de janeiro e fevereiro: em dezembro o hospital gastou cerca de 100 mil euros e em janeiro a fatura foi de 430 mil. Estavam a prever 400 mil euros de poupança com a produção solar interna, o que poderá vir a ser de 700 mil euros aos valores atuais, admite o responsável, havendo no entanto que amortecer o investimento.
Mas não é só esse o resultado esperado: com este investimento, o hospital também ambiciona subir da classe energética D, a terceira a contar do fim, para B-, já no verde.
«Um hospital a longo prazo pensa sempre onde é que pode melhorar mas não é fácil. Há muito pouco investimento nas instalações técnicas e pouca disponibilidade financeira para o fazer», diz Chibante, notando que há ganhos que também podem vir de mudanças comportamentais, esses a custo zero, mas que implicam uma maior consciencialização. «Há 10 anos, fez-se um trabalho de melhoria na gestão de resíduos e triagem e o hospital poupou 100 mil euros num ano. No serviço de imagiologia por cima dos botões há um aviso a lembrar que se não se está na sala se deve desligar as luzes e os monitores. Há pequenas coisas que não implicam investimento, são comportamentos, mas que nos podem trazer ganhos brutais», sublinha o responsável.
O Amadora-Sintra, construído nos anos 90, já tinha uma central térmica para aquecimento de águas – aliás, a unidade concessionada produz até energia para a rede. As intervenções são no entanto visíveis um pouco por todo o lado: o edifício está a ser pintado e terá novo isolamento térmico e foram substituídas nos últimos meses para LED todas as lâmpadas do exterior. «Cada vez que tínhamos de trocar lâmpadas colocava-se LED, mas não tínhamos 300 mil euros para fazer tudo de uma vez», explica Chibante, acrescentando que mesmo quando o retorno se obtém em pouco tempo, como o caso da iluminação, as contas no dia a dia não se fazem assim nos hospitais sujeitos ao financiamento disponível.
Passará agora também a haver um sistema de gestão técnica centralizada, algo também instalado em alguns serviços no Santa Maria, em que há um controlo maior do que está ligado e desligado no interior do hospital, para evitar desperdícios.
Se os passos estão dados e se multiplicam por outros hospitais, entre os responsáveis, a sensação é de que havendo instrumentos e projetos falta uma estratégia mais abrangente na administração pública para requalificação dos edifícios envelhecidos, que poderia trazer eficiências e economias sobretudo nos que mais consomem. Quanto se poderia poupar na Saúde não conseguem dizer, até com a volatilidade atual dos preços, mas acreditam que seria muito.
Fazemos a visita ao Amadora-Sintra num dia de chuva, que não é o melhor para ver os painéis solares, mas Chibante olha para o investimento com satisfação: «É um ganho para todos». E mesmo que este os doentes não sintam, noutros poderão reparar: «À semelhança de alguns hospitais, não nascemos com ar condicionado. Tínhamos quente e não tínhamos frio e vamos passar a ter em todo o edifício», explica. Há agora a ideia no hospital, terminado este projeto, de concorrer à próxima leva do POSEUR para substituir as janelas do edifício que vai perdendo o encardido dos anos mas ainda tem caixilharia pouco eficiente.
Uma poupança equivalente a milhares de viagens de avião
E para quem nunca tinha pensado na pegada ecológica de um hospital, os números dão uma imagem. Vamos ao maior hospital: No Santa Maria, onde eram consumidos cerca de 22 000 000 kWh/ano, o projeto vai permitir uma redução de cerca de 9 000 000, como o objetivo final de ter consumos na casa dos 16 000 000 kWh/ano.
Já está longe dos consumos de uma cidade como Santarém, na casa dos 290 milhões de kWh/ano segundo o Instituto Nacional de Estatística, mas é o que consome, por exemplo, Borba e ficarão ao nível de Cuba, no Alentejo. E esta redução equivale por exemplo ao consumo anual de 4400 cozinhas com placa elétrica, máquina de café, frigorífico e máquina de lavar loiça.
Em termos de diminuição da pegada ecológica, a ficha de projeto da POSEUR, que ainda não está disponível para o Amadora-Sintra, estima uma diminuição anual de 4975 toneladas de CO2 equivalente no Hospital de Santa Maria – sensivelmente as emissões anuais de 1600 carros, usando no cálculo uma média de 2.630 kg de CO2/ano. Já se for trocar por viagens de avião, dá por exemplo 18 mil viagens de ida e volta a Paris (com uma pegada ecológica de 272,6 kg de CO2 por passageiro) ou 7800 viagens Lisboa-Nova Nova Iorque. Na última auditoria, a pegada do hospital era 8721 toneladas de CO2/Ano.
Números que ganham outra escala quando se olha para o ranking de eficiência dos hospitais do SNS publicado pela Administração Central do Sistema de Saúde. A última edição, referente a 2020, revelou que o custo total de eletricidade, gás e água dos hospitais do SNS analisados (82%) ascendeu a 67,5 milhões de euros: 64% em energia elétrica, 21% em gás e 15% em água.
Sem ter em conta aumentos de preços, calculavam que com base na eficiência dos melhores, se todos atingissem o mesmo patamar seria possível obter uma poupança de 6,1 milhões de euros em eletricidade e 2,1 milhões de euros na fatura da água. Seria uma redução de 85.432.460 kWh, quatro vezes o consumo do hospital de Santa Maria. Ou um consumo equivalente ao de uma cidade como Serpa, a meio da tabela nacional em termos de consumos energéticos.