O produtor João Barbosa, mais conhecido como Branko, ex-produtor e fundador dos Buraka Som Sistema, decidiu dedicar o seu novo disco, OBG, lançado esta sexta-feira, aos seus ouvintes. Em entrevista, Branko falou sobre como OBG o transportou para o início da carreira e sobre o futuro da música portuguesa.
OBG (Obrigado) é o seu primeiro disco desde Nosso, disco elogiado pela crítica de 2019. Quando decidiu que queria lançar este terceiro disco a solo?
Foi uma forma interessante de começar a trabalhar porque foi diferente de todos os meus outros discos. Todos os meus trabalhos começaram de formas mais conceptuais. No caso do Atlas (2015) foi a ideia de visitar diversas cidades, passar algum tempo lá e colaborar com artistas especificamente nessas regiões. No Nosso (2019), apesar de ter sido um pouco mais espontâneo, as músicas foram aparecendo inspiradas por viagens, tours, sessões de estúdio. No caso do OBG, só me apercebi que este trabalho já estava a ser criado quando pensei que queria fazer um disco e já tinha muita da música feita.
Foram as músicas que usou nos concertos que foi fazendo durante os últimos anos e publicando no Youtube?
Sim. No fundo, a grande inspiração e combustível para o processo criativo deste trabalho foram esses DJ Sets. Como eram espetáculos tão diferentes tive sempre vontade de levar músicas originais, onde as pessoas não pudessem ouvir em mais lado nenhum, para poderem criar uma ligação mais especial com esse espetáculo, para não ser apenas mais um Set online de um DJ num sítio bonito. Isso não é novidade nenhuma. Quis tentar colocar a minha impressão digital e que fossem mais exclusivos. Acabei por criar tanta música que fui escondendo nos vários Sets que quando chegou a altura de decidir que músicas é que iam entrar no disco todas essas demos já tinham sido desenvolvidas e tocadas. Por isso, em comparação com a minha forma de trabalhar habitual, foi uma experiência quase ao contrário.
Com as músicas já quase todas criadas, o processo de finalizar o disco deve ter sido muito mais calmo do que está habituado?
Foi mais uma questão de finalizar os temas e de decidir o que é que fazia ou não sentido incluir em OBG e porquê. No fundo, era perder um bocado de tempo e agarrar toda a música que tinha desenvolvido e limar as suas arestas até chegar ao formato final do álbum. Como estava a criar de forma descomprometida, não tinha a pressão adicional de que alguém tivesse que aprovar o que estava a fazer, tinha que ser apenas interessante o suficiente para achar que estava a captar a paisagem onde me ia inserir e que pudesse encaixar no set que tinha pensado. Este disco fez-me voltar a 1998 quando estava sozinho no computador do meu pai no sótão da minha casa da Amadora, a fazer música só porque sim. Acordava, sentia-me inspirado e só queria criar música nova.
Deve ser um processo certamente diferente e de onde resultam músicas muito diferentes, mais imediatas.
Sim, mais imediata e, nestes últimos dois anos, por ausência de carreira e concertos, uma vez que te foram retiradas todas as estruturas a que estavas a trabalhar e a construir, também me senti mais solto e livre durante a criação musical. Foi algo que me soube bastante bem, não digo que não existiu uma reação de pânico quando olhava para todo o panorama musical, mas também senti este reflexo para poder criar descomprometidamente e isso soube-me bem, sem dúvida.
E sente que todo esse sentimento se refletiu na elevada produtividade que nos descreveu?
Sim. Mesmo não sendo uma pessoa muito bloqueada em relação ao processo criativo, porque o meu processo criativo é sempre muito social e acho que isso dá para perceber pelo trabalho que tenho vindo a desenvolver, nomeadamente, com inúmeros convidados. Preciso muito de estar com outras pessoas e de debater o que deve ou não entrar na canção. Gosto de começar as músicas por uma ideia, mesmo antes de agarrar no computador e fazer o que quer que seja. Em OBG foi um bocado diferente e este processo criativo teve um impacto muito grande no output musical e naquilo que foram as canções que acabei por criar.
Acaba por gerar uma entrada bastante distinta quando comparado com o resto da sua discografia.
Foi um processo muito interessante, acho que cada disco deve ser o seu próprio capítulo e este já se está a escrever. Um capítulo onde sou mais produtor e DJ, mais virado para a música instrumental, um estilo que sempre tive presente, mas que, de alguma forma, ainda não tinha tido o seu próprio momento e que ganhou espaço para existir.
Em OBG, todos os títulos do álbum são abreviaturas, por que fez esta opção e não, por exemplo, como estava a explicar, dedicar o nome de cada cada música ao local onde foi tocada?
Não queria limitar as canções tão especificamente a um momento ou a uma banda sonora de uma paisagem, mesmo tendo sido uma influência grande para a sua criação. Mas, acima de tudo, escolhi os nomes mais pela forma descomprometida como a música soava. Quis também comunicar dessa forma, assim como adotar um discurso direto e simples. Sou muito fã de ser eficaz, direto e da simplicidade, por isso, costumo muito utilizar todo o tipo de abreviaturas ou de adaptação de discurso. O português é uma língua tão complicada e complexa às vezes que acho interessante esta tentativa de simplificar a comunicação. O primeiro tema que surgiu com esta linguagem foi o MPTS (Meus Putos), e, a partir daí surgiram uma série de músicas com esses títulos, como o SDDS (Saudades), CTG (Contigo) ou o ABR (Abraço).
Suponho então que nos seus chats e mensagens só fale com abreviaturas?
Um bocadinho, quase ao ponto do meu telefone já conhecer mais abreviaturas do que as palavras (risos).
Estava a falar que essas músicas já tinham sido criadas, como foi depois o processo de selecionar o seu título?
Por exemplo, o nome OBG foi um bocado óbvio para o disco porque, enquanto ia fazendo as músicas, um processo que começou no início de 2020, ia sentido que a minha luz ao fundo do túnel foi como as pessoas foram reagindo a estes Sets, sejam aqueles que aconteceram ao vivo no Instagram ou aqueles concertos com uma maior produção e gravados com drones, senti que as pessoas foram mantendo o interesse e a curiosidade para saber quem é que estava a colaborar nestas músicas novas. As pessoas estavam a acompanhar esta viagem de dois anos e ajudaram-me a manter inspirado para continuar a fazer música. No fundo, foi fácil perceber que a grande força e energia que unia todas estas músicas criadas durante este tempo era a minha gratidão por todas as pessoas que continuavam a seguir o meu trabalho. Daí o nome “obrigado, que se calhar estava mais indicado para um coletânea de best of de alguém no final da carreira do que para um disco novo (risos), mas no meu caso é mesmo de gratidão e como forma de reconhecer a proximidade com as pessoas.
Foi mantendo o contacto com os seus fãs durante a pandemia?
Durante estes últimos tempos, algo que fez muita falta foram fontes de música nova, alguém a mostrar música ou artistas novos de qualidade, por isso, as pessoas agarraram-se muito a estes Sets como uma fonte de música nova. Para mim, que tenho uma grande preocupação com inovação, em descobrir conteúdo novo, foi muito importante.
No seu disco anterior contou com a colaboração de artistas mais conceituados como Dino D’Santiago ou Mallu Magalhães. Foi também por isso que escolheu convidar artistas mais desconhecidos?
Sem dúvida, muitos dos colaboradores, o que também torna este um disco diferente, são produtores. Como quis que este disco tivesse um lado instrumental mais forte, em oposição de um lado vocal e contrariar o que tinha feito até agora, acabei por convidar aqueles produtores que eu estava mais a passar durante os meus Sets. Eram as pessoas que estavam a conseguir transmitir melhor através da música a mensagem que eu queria passar. Então, decidi enviar-lhes uma mensagem e perguntar se estavam interessados em colaborar comigo, foi o caso dos Tráz Água, da Ms Mavy, do Fumaxa, três exemplos de produtores que marcaram a sua presença neste disco, apesar de ter sido online. Até ao momento, nunca tinha colaborado tanto com outros produtores. Foi assim que consegui um balanço entre a preocupação e despreocupação e de conseguir criar a música que realmente estava a imaginar, em vez de tentar criar um impacto ou uma conexão óbvia com os artistas ou com uma cena musical.
Sente que se perdeu alguma coisa pelo caminho com as colaborações a acontecerem através da internet?
Não consigo pensar nas coisas dessa forma, prefiro pensar naquilo que se ganhou em vez daquilo que acabou por não acontecer. Acredito que este disco vai trazer de volta todas aquelas conexões que acabaram por não acontecer nestes últimos dois anos, por isso, estou mais curioso pelas reações que isso pode levantar em vez de ficar preocupado com o que acabei por não conseguir fazer.
Nesse caso, o que sente que ganhou de diferente?
A criação deste disco trouxe-me muito conforto. Estava confortável comigo próprio enquanto artista, exatamente pela ligação que consegui ter com o início do meu percurso como músico, que era eu sozinho a fazer instrumentais. Consegui construir a minha narrativa ao ponto de conseguir ter uma audiência para fazer aquilo que me emociona na música eletrónica e que me fez ficar viciado em sentar à frente do computador a produzir música. Agora, consigo fazê-lo, mas com pessoas a demonstrarem interesse em ouvir o que estou a fazer.
É quase uma sensação de full circle.
Soube-me muito bem conseguir completar este círculo. Conseguir criar este circuito foi uma forma de concluir aquilo que é a apresentação de Branko enquanto artista. Já consegui levar o meu trabalho a muitos sítios, agora, só estou curioso para perceber o que vem a seguir. O conforto desta situação foi uma das maiores vitórias deste disco. Além disso, enquanto produtor e DJ, sinto que também ganhei muita música para conseguir despoletar a energia certa nas pessoas em todas as atuações que estão para vir. O disco ser lançado nesta fronteira entre o momento que acabámos de viver e o regresso ao normal, é mesmo feito para ser dançado no futuro. Não foi feito para estarmos a dançar em isolamento, é para o celebrarmos em comunhão. Foi um reportório que ganhei e que me permite demarcar ainda mais a minha identidade, em vez de ter de ir buscar outros recursos e outras versões de músicas para passar nos meus concertos.
Estava a falar de lançar novos talentos, uma das coisas que também o ocupou durante a pandemia foi a produção de jovens artistas como a Rita Vian, Pedro Mafama ou o EU.CLIDES. Sente que se tornou uma referência para esta nova geração de músicos?
Não sei se sou uma referência num estilo específico. Do meu lado, o que sinto é que sou fascinado por música nova e gosto de passar muito do meu tempo livre no soundcloud, porque continua a ser aquela plataforma sem filtro, a descobrir artistas e ideias novas. Isso é algo muito interessante e continuo a apostar nessa descoberta. Enquanto uma pessoa que se tenta manter mais ou menos a par da inovação e das novas tendências e direções musicais, acabo por também atrair alguns artistas novos e gosto de lhes oferecer esse espaço.
Acha que agora, com a pandemia e o desacelerar da nossa vida, teve tempo para conhecer ainda mais artistas?
Completamente, deu-me a oportunidade de conhecer e de dedicar algum do meu tempo, algo que nunca tinha conseguido fazer antes. Por exemplo, acabei por produzir todo o EP da Rita Vian e era uma experiência que não tinha conseguido levar a cabo no ritmo que tinha antes da pandemia. Sou uma pessoa que se tenta manter o mais ativa possível e, nesses momentos, posso perder algumas destas oportunidades. Agora, acabei por ter algum tempo livre e pude utilizá-lo para ajudar algumas destas novas luzes da música portuguesa a iluminar o futuro. Sinto que, a nível do futuro, o meu trajeto passa um pouco por regressar a este caminho, mas não tanto envolvido a nível de produção, mas sim como uma entidade editorial e no processo de lançamento.
Pretende então afastar-se mais do processo criativo e ajudar apenas a criar uma plataforma para artistas mais jovens?
Não necessariamente só a quem está a começar, por exemplo, os Tráz Água são dois produtores que estou muito curioso para perceber o que é que podem trazer para o futuro da música portuguesa.
Ainda neste tópico da sua influência na música em Portugal. Enquanto membro dos Buraka Som Sistema, vocês abriram muitas portas a artistas devido ao vosso som. Sente que agora está a acontecer o mesmo, nomeadamente, entre os artistas que estivemos a mencionar, com o estilo do Novo Fado?
Neste caso, acho que os caminhos vão sendo traçados por cada pessoa, pelas suas decisões e ambição de cada um. Sem dúvida que acredito que sendo eu um artista com mais anos de estrada e de ter construído um caminho internacional, sinto que o que dá para partilhar são as experiências, ideias e, sobretudo, as direções. Se as pessoas forem observadoras, conseguem perceber o que está a acontecer, onde é que nós vamos tocar e tentar perceber o porquê. Limito-me a tentar fazer com que as coisas funcionem para mim e para quem está à minha volta, mas o que acho que acaba por acontecer é outras pessoas acabarem por perceber algumas direções que estão a ser tomadas.
E qual é o sentido neste momento?
Por exemplo, tentar compreender a importância de um festival como o Eurosonic, ou porque é que fazer uma colaboração com um determinado artista pode ser importante, e espero que, no fundo, as pessoas tomem as suas próprias conclusões. Mas é inevitável que um artista mais experiente, que está no sítio onde gostavas de estar daqui a uns anos, acabar por te influência a nível de decisões e gestão do teu percurso.
Enquanto um artista que se preocupa tanto com a inovação, é interessante notar que a sua aposta é em explorar sons da música tradicional portuguesa. Será que o futuro da música portuguesa está em colocar em confronto esta tradição com sons mais contemporâneos e internacionais?
Acho que a mistura da tradição com o futuro é uma fórmula muito forte. Desenvolvi um programa para a RTP, chamado o Clube Atlas, que tem como base viajar por oito cidades, onde a cena eletrónica é muito influenciada pelo passado, falar com músicos tradicionais e DJ’s e produtores atuais e tentar perceber as suas realidades. Acredito que esta é uma fórmula muito universal. Fala para ti, para o teu pai ou o teu avô, é um cruzamento muito forte e fácil de entender para qualquer pessoa.
Ao colocarmos a nossa música em confronto com o que se está a fazer no mundo acabamos por lhe dar uma maior valorização. Mas nem todos apostam na música portuguesa da mesma forma, por exemplo, o Paredes de Coura decidiu adicionar ao festival um dia extra só de música portuguesa, onde acaba quase por isolar e criar um gueto para estes artistas.
Foi uma ideia que eles trouxeram e que eu não adoro. Faz-me lembrar o tipo de pensamento que ouvia no início da minha carreira, quando chegavam à minha beira e diziam: “Isto soa bem, nem parece português”. Essa era uma das frases que mais me marcava e deixava de ter em conta a opinião dessas pessoas porque parece-me algo um bocado parvo de se dizer (risos). Mas, para ser sincero, existem muitos países que possuem gabinetes incríveis de desenvolvimento e exportação de música nacional, mas nós não os temos. Por isso, até que ponto é que este esforço para se conseguir juntar umas dezenas de artistas portugueses num dia único de um festival estará errado? Acho que é possível olhar para estes dois lados da moeda. Sempre que estou responsável pela curadoria de um evento tento sempre que seja o mais inclusive possível e que seja possível mostrar a riqueza musical de Portugal e o que é que complementaria isso a nível internacional.
Sente que apesar desta falta de apoio estatal, que o futuro da música portuguesa está em boas mãos?
Focando naquilo que está a acontecer em Portugal, o que acaba por acontecer é que, no caso de uma artista como a Rita Vian, que tem um passado enraizado na música portuguesa, a cantar o fado depois de jantar com a família, mas que quando saia à noite ia ver um concerto de Buraka Som Sistema ao Lux. No percurso dessa noite, ela acaba por viver tudo aquilo que se está a fazer em Portugal já há algum tempo.
Sente que toda essa experiência em primeira mão ajuda a criar uma música mais genuína?
O resultado é muito forte quando as coisas são verdadeiramente honestas e quando estão a acontecer sem que alguém, como a própria indústria, esteja a forçar algo. Sem dúvida, esta nova geração de artistas que está a desconstruir a música tradicional portuguesa é muito honesta e é uma mistura genuína da confusão que se vive, nomeadamente, em Lisboa, porque os artistas que estamos a falar vivem todos nesta cidade. Lisboa é um melting pot muito forte e dá para se sentir. Lisboa é diferente. Não pensamos que estamos no centro da Europa, estamos longe de tudo, a maior cidade que temos perto de nós é Madrid, que nem é uma cidade que acolha bem projetos internacionais a não ser que sejam nomes já estabelecidos. Por isso, estamos lixados. Temos que nos entreter com a confusão da nossa cidade e isso criou um cenário musical único e Lisboa tem ainda muito para dar ao mundo.