Ucrânia. Mariupol prepara-se para o fim, mas o pior está para vir no resto do Donbass

“As munições estão a esgotar-se”, lia-se na página dos fuzileiros que defendem a cidade há mais de 40 dias. Uma coluna blindada russa avança sobre Izyum, na retaguarda dos militares ucranianos em Donbass.

Os fuzileiros ucranianos que ainda resistem no centro de Mariupol preparam-se para o fim. “Hoje provavelmente será a última batalha, dado que as munições estão a esgotar-se”, escreveram numa conta de Facebook pertencente à 36ª brigada de fuzileiros, na segunda-feira. Estes militares de elite deram por si presos nas ruínas de Mariupol, constantemente bombardeados e cercados pelo poderio russo. Não conseguirão resistir muito mais. “Será a morte para alguns de nós e o cativeiro para os restantes”, previram os fuzileiros, enquanto os seus camaradas se preparam para enfrentar a ofensiva russa no Donbass, que arrisca ser ainda mais sangrenta que aquilo a que assistimos até agora, apontam analistas. 

Se os defensores de Mariupol – compostos sobretudo por elementos da 36.º brigada de fuzileiros e da 56.ª brigada de infantaria motorizada, em conjunto com nacionalistas do batalhão Azov, um grupo neonazi – viraram um símbolo para a resistência ucraniana, obrigando a Rússia a ter de empenhar tropas que poderiam ter sido usadas noutras frentes, o seu destino pode ser a demonstração do que enfrentarão as forças ucranianas em Donbass, quando forem o foco da ofensiva russa. 

“A montanha de feridos é composta por quase metade da brigada. Aqueles cujos membros não foram arrancados voltam à batalha”, lia-se na publicação da 36.ª brigada de fuzileiros, que está sitiada há mais de 40 dias. Deparam-se com terríveis combates urbanos, corpo a corpo, tentando defender as gigantescas metalurgias Azovmash, na zona portuária, dada como uma das últimas bolsas de resistência ucraniana em Mariupol. 

“A infantaria foi toda morta e as batalhas com tiroteio são agora conduzidas por artilheiros, atiradores de armas antiaéreas, operadores de rádio, motoristas e cozinheiros”, continuava a publicação. “Até a orquestra”. 

Os sonhos do Kremlin A escalada da brutalidade em Mariupol chocou o mundo. Mas agora que as forças russas parecem prestes a conquistar esta cidade, crucial para os sonhos do Kremlin de criar um corredor entre o Donbass e a Crimeia, a expectativa é que uma ofensiva semelhante se repita, até a uma escala maior.

“A batalha pelo Donbass recordar-vos-á da II Guerra Mundial”, descrevera o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, perante os líderes da NATO. A diferença é que desta vez conseguimos ver o que se passa em tempo real, nem que seja através de imagens de satélite, caso os russos mais uma vez cortem as comunicações dos seus alvos, como em Mariupol. 

A NATO estima que o Kremlin procure duplicar ou até mesmo triplicar as suas forças em Donbass, mas há grandes dúvidas quanto à sua capacidade para tal. Estima-se que dos cerca de 130 Grupos Batalhão Táticos – uma formação usada pelos militares russos, rondando os mil efetivos, contando com artilharia própria, defesas aéreas, tanques e transportes, com propósito de ser autónoma e flexível – colocados na Ucrânia, uns 37 ou 38 não estão operacionais.

A nível de veículos militares então, as perdas têm sido brutais, com os peritos militares da Oryx a confirmar que a Rússia perdeu pelo menos 460 tanques e dois mil veículos blindados . Analistas notam que a organização em Grupos Batalhão Táticos tenta oferecer o máximo de poder de fogo, mas conta com pouca infantaria para proteger as forças mecanizadas do tipo de emboscadas com lança-mísseis em que as forças ucranianas têm apostado. 

“Os russos vão ter de reequipar e renovar as suas unidades, incorporar pessoal fresco e organizar-se no geral para fazer um novo ataque”, apontou uma fonte ocidental à BBC. “Presumivelmente isso vai demorar um bocado. Isso dá-nos uma janela incrivelmente importante”, explicou, segunda-feira, no mesmo dia em que Volodymyr Zelensky avisava que dezenas de milhares de tropas russas estavam a mobilizar-se no leste. 

Imagens de satélite da Maxar têm mostrado uma gigantesca coluna de blindados que deu a volta a Kharkiv para se dirigir a Izyum, a sul, na retaguarda da Joint Forces Operation (JFO). Trata-se da elite das forças ucranianas, composta por cerca de 40 mil tropas, quase um quarto dos seus efetivos militares, que foram apanhados de frente para os separatistas de Donetsk e Lugansk no início da invasão.

Aqui, a expectativa não é da mistura entre guerra convencional e guerrilha que vimos no norte de Kiev, mas de sucessivos ataques frontais russos. “Dado que os russos encurtaram as suas linhas de comunicação e se focaram na sua área de operações, dá-lhe a oportunidade de concentrar as suas forças mais efetivamente”, explicou uma fonte na NATO ao Financial Times. Ao mesmo tempo, as forças russas conseguem ir atingindo as linhas de abastecimento ucranianas para leste.

O aeroporto regional de Dnipro, no centro da Ucrânia, ficou destruído pelo bombardeamento com mísseis russos no dia anterior, soube-se esta segunda-feira, tendo o Kremlin se gabado de pelo meio ter destruído uma bateria de mísseis S-300 oferecida por um país europeu. Já a estação de comboios de Kramatorsk, uma cidade por onde mais de 200 mil civis tinham sido evacuados, ficou completamente destruída devido a um ataque com mísseis, que fez pelo 52 mortos entre a multidão de refugiados que lá se aglomerara. “Para as crianças”, lia-se em em russo, num dos mísseis que devastou a estação, obrigando a que quem quer fugir da região o faça em veículos privados.

Perante a escala dos abusos contra civis, não espanta a resistência da população ucraniana. Mesmo tratando-se o Donbass de uma região russófona, o Kremlin arrisca deparar-se com uma Mariupol em cada localidade. Aliás, “Mariupol era uma das cidades mais pró-Rússia na Ucrânia”, notou Konrad Muzyka, especialista em Defesa da Rochan Consulting, citado pela BBC, mostrando-se surpreendido com a ferocidade da resistência nesta cidade. “A certo nível, é algo para lá da minha compreensão”.