por António Manuel de Paula Saraiva
Há dias, num artigo neste semanário, Pedro Ramos, escrevendo de Nova York, lembrava a oração de S. Francisco – santo da frugalidade, que amava os lobos e os passarinhos, e cujo nome o actual Papa quis adotar. Só vim a conhecer essa oração já depois dos meus 30 anos, mas logo me tocou pela singeleza e profundidade. Oração que assim começa: “Senhor, fazei de mim instrumento da vossa Paz”. E que continua: “Onde houver ódio, que eu leve o amor/ Onde houver ofensa que eu leve o perdão/ Onde houver discórdia que eu leve a união… “(1).
E como o nosso espírito voa mais rápido que o vento, súbito comparei essas palavras com o que vemos e ouvimos na nossa comunicação social – da boca de jornalistas, comentadores, e dos políticos em geral – sobre a guerra na Ucrânia. São mais que raras as palavras de bom-senso, os apoios à concórdia, as palavras de Paz: apenas notícias de bombardeamentos, mortes, e pedidos de “Armas, Armas, Armas”, que sinistramente ecoam as palavras dos esquerdistas espanhóis (2). Quando parece que se caminha para um acordo, ou pelo menos para um diminuir da ferocidade, logo surge algo que torna qualquer acordo “impossível”.
As guerras são inúteis
E tudo isto é tanto mais de espantar quanto uma ainda que ligeira análise histórica nos mostra como as guerras são inúteis. Que aconteceu às vitórias de Napoleão? Às fulgurantes vitórias das tropas de assalto de Hitler? A América perdeu a guerra do Vietname, mas actualmente esse país será a espartana república com que os vietcongs sonharam? Franco ganhou a guerra civil de Espanha, mas se a Espanha de hoje não é soviética é bem diferente da Espanha franquista. E os exemplos poder-se-iam multiplicar.
O sofrimento é real
Mas se as vitórias e vanglórias militares se esfumaram com o vento, a morte, o espanto, a fome de quem foi apanhado nesses conflitos foi bem real. A guerra é cruel, mata, queima, chama a vingança. Como se diz no hino francês “A Marselhesa” (3):
“Ouvem nos campos
Os uivos desses soldados ferozes?
Eles vêm até às vossas casas
Degolar os vossos filhos, as vossas companheiras.
Às armas cidadãos!
Formai vossos batalhões!
Marchemos, marchemos
Que um sangue impuro regue os sulcos dos nossos arados.”
Quanto sangue seria necessário para com ele regar os campos?
A fina capa da Civilização
Rodrigo Saraiva, num recente artigo neste semanário explica (é professor de comportamento humano) que o homem evoluiu em pequenas tribos, que se defendiam (ou atacavam, conforme as situações) outras tribos. E que a civilização deitou uma fina capa sobre esses comportamentos, mas uma fina capa que tem de ser defendida cuidadosamente, pois é muito fácil de romper, voltando-se então à barbárie – ou, se não quisermos usar um adjectivo tão forte, a um comportamento animalesco.
Um mundo constipado
Quando era escoteiro li um livro de Baden Powell, o fundador desse movimento, “Escotismo para Rapazes” (Scouting for Boys). Nele se vê um desenho de um rapaz constipado, com esta legenda, que, talvez por ser em verso, nunca esqueci “Diziam os entendidos/ Muitas mantas sobre o chão/ Mas o Chico é mais esperto/ E apanha constipação.” (4).
Também os “Chicos políticos”, do nosso tempo se acham mais inteligentes, mais realistas, que São Francisco – e procuram resolver os diferendos pela guerra. E assim o Mundo fica doente – a Ucrânia está a ser queimada em fogo rápido e a Rússia em fogo lento – mas nós também estamos a ser chamuscados, pois cada bala e cada casa destruída terá de ser paga. E, talvez pior, arriscamo-nos a perder a tranquilidade e a ficar com cicatrizes de medo e de ódio.
E quando o Mundo mais precisaria de entendimento – para enfrentar as pandemias, as crises económicas, a crise climática, os crimes financeiros internacionais, para potenciar o conhecimento científico – uma nova “Cortina de Ferro” está caindo sobre o nosso continente.
É por isso que a minha pessoa, um simples cidadão sem riqueza nem poder, quis, neste tempo de Páscoa, relembrar as simples palavras de S. Francisco: “Senhor, fazei de mim instrumento da vossa Paz/ Onde houver ódio, que eu leve o amor/ Onde houver ofensa que eu leve o perdão/ Onde houver discórdia que eu leve a união… fazei que eu procure mais: consolar, que ser consolado/;
compreender, que ser compreendido/ amar, que ser amado…”.
Aljubarrota, 9 de Abril de 2022
(1) O conhecido escritor e guionista de séries de televisão Francisco Moita Flores, quando, numa breve passagem pela política, tomou posse como Presidente da Câmara de Santarém, deu um exemplar dessa oração a cada um dos funcionários.
(2) A guerra civil de Espanha iniciou-se em 1936 por uma revolta militar contra o governo esquerdista de então. Esse governo, falho de forças militares para pôr fim à revolta, e não se querendo render, optou por aceder aos pedidos das organizações esquerdistas e distribuir-lhes armas, assim se iniciando a terrível guerra civil, que duraria até 1939.
(3): “Entendez vous dans les campagnes
Mugir ces féroces soldats
Ils viennent jusque dans vos bras
Egorger vos fils, vos compagnes
Aux armes citoyens!
Formez vos bataillons!
Marchons, marchons
Qu'un sang impur abreuve nos sillons.
(4) – Como facilmente se compreenderá Baden Powell quis alertar os rapazes para o facto de a humidade vinda do solo ser mais de temer que a frialdade do ar.