Vladimir Putin gabou-se da sua “nobre” invasão da Ucrânia, descrevendo as negociações de paz como estando num “beco sem saída”. E mostrando-se confiante que a derrota das forças russas na batalha por Kiev não é o fim dos seus sonhos expansionistas. Aliás, nesse mesmo dia, enquanto relatos não confirmados do uso de armas químicas nas ruínas de Mariupol eram investigados, o Governo ucraniano anunciava que a próxima ofensiva russa, no leste, para tomar Donbass, já começou.
Putin, que tem estado em reclusão nas últimas semanas, saindo apenas para o aniversário de um ideólogo do nacionalismo russo mas sem comentar o conflito, aproveitou o 61.º aniversário do primeiro voo espacial, tripulado por Yuri Gagarin, para comparar a sua guerra aos feitos dos cosmonautas soviéticos.
“As sanções eram totais, o isolamento completo, mas a União Soviética ainda assim foi a primeira a ir ao espaço”, salientou o Presidente russo, recordando como isso captou a sua imaginação em criança. É difícil imaginar que as atrocidades cometidas na Ucrânia, como os massacres, violações e pilhagens em Bucha, possam ter esse efeito inspirador nesta geração de russos, mas não é recomendável subestimar o poder da propaganda do Kremlin.
“Não pretendemos ser isolados”, continuou o líder russo, ao lado do ditador bielorrusso, Alexander Lukashenko, com quem foi ao cosmódromo Vostochny, no extremo leste da Rússia. “É impossível isolar alguém no mundo moderno. Especialmente um país tão vasto como a Rússia”, assegurou Putin.
Contudo, se a Rússia de facto não está totalmente isolada, contando com apoio de gigantes como a China, Índia, Paquistão ou Irão, a pressão do Ocidente pode aumentar ainda mais, caso se provem as acusações do uso de armas químicas em Azovstal. Trata-se de uma das maiores metalurgias da Europa, que agora é um dos últimos redutos ucranianos em Mariupol.
Analistas têm-se mostrado céticos quanto às alegações. Não só por virem do batalhão Azov, um grupo neonazi que tinha o seu quartel-general em Mariupol, mas também pelas incongruências nos vídeos divulgados.
“Os sintomas são inconsistentes com qualquer agente nervoso que eu conheça, sem nenhum relato de constrição das pupilas, dilatações, convulsões”, frisou Eliot Higgins, fundador do Bellingcat, um site de investigação jornalística que se notabilizou com a sua cobertura do uso de armas químicas na Síria.
A alegação do batalhão Azov, era que os russos teriam lançado gás através de um drone, para expulsar os defensores de Azovstal, deixando algumas das suas tropas com dificuldades respiratórias. Não seria uma noção descabida, dado que ainda no dia anterior o porta-voz dos separatistas de Donetsk, Eduard Basurin, pediu ao Kremlin que faça “com que as toupeiras saiam dos seus buracos” em Mariupol usando “forças químicas”, perante a televisão estatal russa.
O Kremlin poderia assumir que, estando os defensor de Mariupol cercados, seria praticamente impossível investigar o uso desta armas proibidas. Além de que os Azov, acusados de abusos contra russófonos, que se viraram num dos pretextos favoritos de Putin para a sua invasão, certamente seriam um dos alvos preferenciais para qualquer ataque químico russo.
Estas alegações surgem na mesma altura em que o general Alexander Dvornikov tomou controlo das operações russas na Ucrânia. Alcunhado de “carniceiro da Síria”, encabeçou a intervenção militar que salvou o regime de Bashar Al-Assad, bombardeando impiedosamente civis, enquanto militares sírios lançavam gás cloro, apurou a Organização para a Proibição de Armas Químicas.
As vítimas de Assad ainda aguardam por justiça, sem grande esperança. “Não há nenhuma meio de dissuasão para a Rússia”, notou Youssef, de 33 anos, à Reuters. Sobreviveu a um ataque com gás sarin na sua aldeia de Khan Sheikhoun, em 2017, onde viu familiares e vizinhos morrerem, a espumar da boca. “Até hoje, o criminoso está livre”, lamentou Youssef.
No que toca às alegações da utilização destas armas em Mariupol, “a coisa mais valiosa que poderia ser feita neste momento é recuperar os restos da munição usada”, recomendou Higgins no Twitter, lembrando que “deveria haver restos da munição, dado que estão desenhadas para soltar agentes químicos, não para rebentar”.
Já Dan Kaszeta, investigador do Royal United Services Institute (RUSI) e autor de Toxic: A History of Nerve Agents, from Nazi Germany to Putin’s Russia, também mostrou dúvidas quanto aos relatos do uso de armas químicas. Explicando no Twitter que ainda é cedo para tirar conclusões e que Azovstal é uma metalurgia. “Há imensa margem num ambiente industrial para que armas convencionais ou incendiárias causem problemas químicos”.
Terror
Apesar de estar tudo por apurar, o Ocidente fez questão de deixar claro que não toleraria um ataque químico russo. O Pentágono descreveu as alegações como “profundamente preocupantes”, enquanto o ministro da Defesa britânico, James Heappey, prometeu que “o uso de armas químicas terá uma resposta” e que “todas as opções estão em cima da mesa”.
Já Volodymyr Zelenskiy assegurou que as ameaças da utilização de armas químicas estavam a ser tidas em conta, e que os russos estavam preparados para “uma nova fase do terror contra a Ucrânia”. Se isso envolverá armas químicas ou não, ainda é incerto, mas ninguém tem grandes dúvidas que a ofensiva contra Donbass pode tornar-se ainda mais sangrenta que as tentativas de cercar Kiev.
O Kremlin “não irá parar as operações militares” na Ucrânia até que saia vitorioso, declarou Putin. Estava ao lado do seu homólogo bielorrusso, cujo território fica bem próximo de Kiev, impedindo que o grosso das forças ucranianas lá posicionadas se dirija ao Donbass, enquanto uma enorme coluna de tanques russos era filmada a avançar em direção à região, vinda da Rússia, perto de Matveev Kurgan, nos arredores de Rostov.
Putin queixou-se das sucessivas denuncias “falsas” de atrocidades cometidas pelos russos. “Houve provocações na Síria, quando o uso de armas químicas pelo Governo de Assad foi forjado”, referindo-se às investigações da Organização para a Proibição de Armas Químicas, uma agência da ONU. “O mesmo é falso em Bucha”, garantiu.