Ucrânia à espera da guerra nas trincheiras

Os ucranianos pedem armas pesadas, à espera da ofensiva russa em Donbass. Biden acusa os russos de ‘genocídio’, mas não se envolve. Os peritos estão pouco convencidos com as acusações de uso de armas químicas em Mariupol.

Forças russas, abaladas pelas perdas dos últimos meses, fazem a longa viagem à volta da Ucrânia, reorganizando antes de serem atiradas contra Donbass. O Kremlin tenta ir buscar reforços um pouco por toda a extensão do seu território, até além-fronteiras, enquanto as forças ucranianas aprofundam trincheiras, reforçam fortificações e posicionam a sua artilharia para os receber com fogo. Ansiando por que os países da NATO repensem a sua política de não entregar armamento pesado ao Governo da Ucrânia, antes que seja tarde de mais.

Joe Biden chegou ao ponto de acusar o Kremlin de genocídio, considerado o crime mais grave punido pelo Tribunal Penal Internacional. Mas isso não parece ter alterado os cálculos da NATO, receosa da retaliação russa caso ofereça armas ‘ofensivas’ à Ucrânia.

«Chamei-lhe genocídio porque se torna cada vez mais claro que Putin está simplesmente a querer aniquilar a ideia de sequer se ser ucraniano», explicou o Presidente americano à imprensa, esta quarta-feira. «Deixaremos os advogados decidir internacionalmente se isso se qualifica como tal ou não, mas certamente me parece que o é».

No entanto, não será necessariamente por haver este salto retórico que começarão a chegar a Kiev os tanques, caças, baterias de mísseis e artilharia de longo alcance que Volodymyr Zelensky tem implorado à NATO.

«Não creio que neste momento haja alterações nas variáveis que venham mudar a decisão política tomada já antes da guerra começar. Que é o não envolvimento direto», aponta Sandra Fernandes, professora de Relações Internacionais na Universidade do Minho, especializada nas relações entre a Rússia e a Europa, ao Nascer do SOL. «E sobretudo mudar aquele equilíbrio, que tem de ser traçado, de a NATO não se tornar cobeligerante. Isso não se alterou».

Não que isso demova o Presidente ucraniano de pedir mais apoio aos seus aliados. «Quando se trata de armas necessárias, ainda dependemos dos mantimentos, dos nossos parceiros», admitiu Zelensky. «Infelizmente não estamos a receber tanto quando precisamos. Em particular para levantar o bloqueio de Mariupol».

 

Uma cidade prestes a cair

Talvez o cenário mude caso se verifiquem as acusações do uso de armas químicas pelas forças russas em Mariupol. Nesse caso, «todas as opções estão em cima da mesa», prometeu o ministro da Defesa britânico, James Heappey, à Sky News. Mas o mais difícil é provar essas alegações, dado que uma perícia independente é praticamente impossível com a cidade cercada. Além de analistas terem expressado ceticismo quando aos relatos que vão chegando, vindos do batalhão Azov, um grupo neonazi que tinha o seu quartel-general em Mariupol.

Os militantes neonazis deram por si foram empurrados para Azovstal, uma das maiores metalurgias da Europa, que se converteu num dos últimos redutos ucranianos na cidade. É lá que estão também entrincheirados elementos da 36.ª brigada de fuzileiros, sob cerco há mais de 40 dias, e que na segunda-feira avisaram que estavam quase sem munições. Esta quarta-feira, o Kremlin gabava-se de que mais destes mil fuzileiros se tinham rendido.

Pelo meio, os Azov publicaram vídeos dos seus combatentes com aparentes dificuldades respiratórias, acusando os russos de usar um drone para os atingir com gás, de maneira a expulsá-los das suas posições. As ameaças dos separatistas de Donetsk – cujo porta-voz, Eduard Basurin, tinha pedido publicamente ao Kremlin que usasse «forças químicas» para «que as toupeiras saiam dos seus buracos» – fizeram com que a acusação fosse levada muito a sério, mas os relatos dos Azov não batem certo, avaliou Eliot Higgins, fundador do Bellingcat. Este site de investigação jornalística notabilizou-se pela sua cobertura do uso de armas químicas pelo regime sírio, aliado de Moscovo.

«Os sintomas são inconsistentes com qualquer agente nervoso que eu conheça, sem nenhum relato de constrição das pupilas, dilatações, convulsões», frisou Higgins no Twitter. «A coisa mais valiosa que poderia ser feita neste momento é recuperar os restos da munição usada», recomendou. «Deveria haver restos da munição, dado que são desenhadas para soltar agentes químicos, não para rebentar». Não que reste muito tempo para isso, com a resistência em Mariupol a ceder, permitindo que o Kremlin aponte a mira a outros alvos.

 

‘Os russos vão até onde os deixarem ir’

As forças ucranianas sabem bem que em Donbass as táticas com que travaram os russos a norte de Kiev não são tão viáveis. A mistura de guerra convencional, bloqueando pontos estratégicos, ao mesmo tempo que emboscavam a retaguarda dos invasores a partir das florestas e montes do norte, estilo guerrilha, não é o que veremos em Donbass. Trata-se de uma região plana, com menos cidades a bloquear o avanço russo, mas onde os ucranianos estão há anos a construir bunkers, receosos dos separatistas que controlam um terço de Donbass.

A expectativa é que esta ofensiva russa se torne um confronto estilo II Guerra Mundial. «É uma coisa que não se viu ainda na Ucrânia», aponta Carlos Branco, major general na reserva e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

«O que nós temos assistido são essencialmente escaramuças, tirando em Mariupol, onde houve combate em zonas edificadas, que é algo terrível», explica. «Aqui não vão ser escaramuças», continua. «É uma zona que está muito fortificada. Ou os russos destroem tudo com artilharia e obrigam os ucranianos a renderem-se… Ou se os ucranianos resistirem vai ser uma coisa horrível».

É em Donbass que está colocada a nata das forças militares da Ucrânia, um contingente estimado entre as 40 a 60 mil tropas, as mais bem treinadas e equipadas. Mas não têm supremacia aérea, estando cercadas a sul, leste e norte, «numa situação muito difícil», considera Branco. «Ainda não estão cercados a oeste, no zonas do eixo Dnipro-Kiev», nota, «mas foram feitos uma série de ataques em profundidade pelas forças russas», procurando destruir as suas estruturas de abastecimento. Chegando a deixar operacional o aeroporto regional de Dnipro, esta semana, num ataque onde o Kremlin anunciou ter destruído baterias de mísseis S-300 oriundas da Eslováquia.

Se pode parecer que houve um desacelerar do ritmo da invasão com a retirada do russa de Kiev, Cherniiv e Sumy, enquanto a vida voltava a uma estranha normalidade na capital, as tropas ucranianas em Donbass não sentiram isso, de todo. Desde o início da invasão que defendem a linha da frente, constantemente alvo de mísseis, artilharia, bombardeamentos aéreos. O que se agravou ao longo das últimas semanas.

Ao mesmo tempo, forças russas deram a volta a Kharkiv, avançando em Izyum, ameaçando fechar o cerco às forças ucranianas em Donbass. Já um assalto frontal às posições ucranianas parece improvável a Carlos Branco.

«Se esta batalha for ganha pelos russos, a questão é em que condições. Porque muitas vezes pode-se ganhar uma batalha e ficar de tal forma desgastado que não há condições para prosseguir o combate, é uma vitória pírrica», aponta.

«Creio que os russos estão a tentar evitar essa ação, por isso é que têm empregue a sua força aérea de forma tão violenta. Para causar grande erosão nestas forças ucranianas, e para que as suas forças blindadas e de infantaria mecanizada tenham a tarefa facilitada». O que ninguém tem dúvidas é que «esta batalha vai ser decisiva para o futuro da Ucrânia».

 Ainda que ninguém saiba qual o objetivo final do Kremlin, exceto talvez o próprio Putin, torna-se cada vez mais claro que «a Rússia pretende controlar, autonomizar o leste da Ucrânia», considera Sandra Fernandes. «Quem diz leste diz parte do norte, ou seja, toda aquela fronteira com a Rússia, provavelmente é algo mais alargado que o Donbass, mais o território a sul», explica. E salienta: «Os russos vão até onde os deixarem ir».