Por Felícia Cabrita e Maria Moreira Rato
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) ainda não conseguiu reunir o número suficiente de juízes para realizar o próximo movimento nacional que está prestes a acontecer – está previsto para o próximo mês de julho. Este é um outro lado da situação crítica dos tribunais portugueses, sendo que o i noticiou nesta semana que o Ministério Público (MP) está a braços com uma grave falta de magistrados em todo o país e, como se não bastasse, também alguns dos seus quadros com maior experiência e que ocupam cargos de direção estão a optar pela jubilação (aposentação) assim que reúnem condições para tal.
Os melhores já não vão para a magistratura
«É uma situação que tem pelo menos 10 anos. O número de candidatos tem diminuindo e, havendo menos, a matemática resolve isso: a qualidade média pode ser inferior e há menos probabilidade de preencher as vagas», afirma Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), na ótica do qual aquilo que está a passar-se na magistratura judicial é diferente dos problemas que atravessam o MP, considerando que, globalmente, o quadro de juízes é adequado. O problema? Há muitos que estão em funções burocráticas e administrativas.
Além disso, Ramos Soares aponta outro problema: os candidatos à magistratura têm diminuido. Para o juiz, «não há uma resposta» exata para a falta crónicade magistrados, contudo, acredita que existem algumas razões que a podem justificar. Em primeiro lugar, uma questão cultural, na medida em que «não há tanto interesse dos jovens licenciados numa profissão com estabilidade e segurança para 40 anos».
Em segundo lugar, há «algum desgaste no imaginário das pessoas por causa das constantes notícias negativas relacionadas com a justiça» e, por fim, «o facto de a bolsa de estudos ter um valor muito baixa, paga pelos auditores, do CEJ, e de este estar sediado em Lisboa leva a que as pessoas de longe, com menos possibilidades, possam não suportar essa despesa».
«O problema no Supremo tem a ver com outras circunstâncias. Chega-se ao Supremo Tribunal de Justiça muito tarde e as pessoas já vão muito cansadas. E, depois, o trabalho no Supremo não é um trabalho fácil. E as pessoas, quando atingem os 65 anos, que é a idade da jubilação segundo o estatuto, desde que tenham 40 anos de serviço pedem a jubilação», adiciona, à sua vez, fonte do CSM ao Nascer do SOL.
Os magistrados têm um regime especial – a jubilação – que lhes permite pedir a aposentação mais cedo do que a idade legal de reforma fixada para os outros trabalhadores em geral. Auferem o mesmo salário e subsídios, ficam à disposição dos conselhos superiores para projetos especiais, se necessário, e continuam sujeitos ao estatuto disciplinar. Mas também podem ficar em funções até à idade-limite de 70 anos, algo que era comum acontecer até há relativamente pouco tempo no caso de magistrados em cargos de direção ou nos tribunais superiores.
«Há falta de juízes e muita falta. Faltam-nos 11 juízes para fazer o próximo movimento. Está complicado. Por isto mesmo, o CSM apela a que seja feito um reforço na formação no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). E a razão é simples: todos os anos se jubilam mais dos que os juízes que entram no quadro. Já há dez anos que se nota esta tendência e cada vez se vai agravar mais. Há sempre mais vinte juízes que se jubilam em relação aos que entram», começa por explicar uma fonte do CSM ouvida pelo Nascer do SOL.
Já no MP a situação rebenta pelas costuras. «O problema atual tem que ver, por um lado, com o facto de haver um grande número de magistrados em idade de aposentação/jubilação, consequência de muitos anos de falta de investimento na formação de novos procuradores», já havia explicado Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP (SMMP), alinhando-se com o presidente da ASJP e a fonte do CSM. Como tal, «os magistrados chegam ao topo da carreira ou à categoria superior (procurador-geral adjunto) já em idade de aposentação/jubilação, ou a um ou dois anos de a atingirem. Por isso, as entradas não cobrem o número das saídas».
Por outro lado, aponta o líder sindical, a especialização que é atualmente necessária para responder a fenómenos criminais complexos ou que exigem um tratamento especializado – como é o caso dos crimes de violência doméstica – implicam maiores recursos humanos, «o que fez agravar mais a situação já de si dramática».
Segundo Adão Carvalho, no último Governo, houve um aumento de vagas para o MP, mas não o suficiente para equilibrar o quadro: «Tal só será possível com a admissão, no prazo máximo de dois anos, de pelo menos 250 magistrados». Por isso, o SMMP vem reivindicando junto do Ministério da Justiça a abertura extraordinária de vagas, designadamente criando, mesmo a título excecional, dois polos do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), um no Porto e outro em Lisboa, para tornar isso possível –, mas a resposta tem sido sempre a de que esta instituição, responsável pela formação de magistrados, não tem estrutura que o permita.
Entre as recentes normas que estão a lançar o caos na investigação criminal e nos tribunais está «o pacote legislativo que, a coberto de uma legislação anticorrupção, permitiu que se introduzissem alterações que apenas vêm entorpecer o funcionamento da Justiça» – como o art.º 40 do Código de Processo Penal, que alargou os casos de impedimentos dos juízes, os recursos para os tribunais da Relação e as novas regras processuais penais para representação das pessoas coletivas e das sociedades.
Os obstáculos são, na prática, cada vez maiores, e os objetivos das alterações às leis pouco claros: «Temos dúvidas se terá sido só por pressa legislativa…. ou qual a intenção de algumas alterações». Esta alteração legislativa, o excesso de garantismo que irá barricar ainda mais as investigações, terá sido, segundo fontes do MP, a gota de água para Orlando Romano ter batido com a porta tão cedo.
Os históricos vão saindo
Tal como o jornal i noticiou esta semana, um dos históricos que já saíram é Orlando Romano (66 anos), ao fim de 45 anos de serviço. Segundo o Nascer do Sol apurou, no início do verão será a vez de Albano Morais Pinto, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), o órgão do MP que coordena os inquéritos mais complexos e graves, e um dos mais experientes quadros desta.
Orlando Romano dirigiu a Procuradoria Regional de Lisboa nos últimos dois anos e saiu em 28 de fevereiro, tendo sido substituído por Helena Gonçalves. Tornou-se conhecido pelo seu trabalho à frente da Direção Central de Combate ao Banditismo (DCCB) da Polícia Judiciária, tendo sido também diretor da PSP (2005 a 2008). Nos 15 anos em que esteve na DCCB, conduziu investigações como as operações que desmantelaram as FP-25 e o ‘grupo dos Cavacos’, nos anos 80, e o gangue do Multibanco, na década de 90. Mas também casos como o rapto e sequestro do filho do empresário Sousa Cintra e o das máfias do Leste, na mesma altura.
Da sua geração de magistrados, a maioria já saiu. As aposentações/jubilações estão a atingir sobretudo os quadros dos tribunais superiores (Relação e Supremo Tribunal de Justiça). «Estamos na penúria, em termos de recursos humanos. O que há a fazer é meter mais gente ou simplificar as coisas. Mas o que está a acontecer é precisamente o oposto», salientou a mesma fonte, numa referência ao recente pacote legislativo na área da corrupção, que alargou os impedimentos dos juízes nas fases de inquérito e de instrução, além de ter introduzido alterações no funcionamento dos coletivos nos tribunais da Relação, através de normas que não são claras e que estão a suscitar decisões de sentido contrário.
Além disso, «os recursos são infindáveis», acrescentou a mesma fonte: «Há processos que se tornam impossíveis de investigar por causa dos recursos, cujas possibilidades ainda foram mais alargadas. As partes podem ir até ao Supremo e ao tribunal Constitucional com questões que, em bom rigor, não deviam poder ir. Assim, quem tem dinheiro para pagar as custas judiciais leva as coisas até à exaustão. Tem de haver um equilíbrio entre os interesses do Estado e das Justiça e os direitos dos cidadãos».
«Estamos numa fase de excessos. Depois não há gente. O poder político acha que as pessoas podem sair e quem fica consegue aguentar com a carga de trabalho, mas não consegue. Há centenas de pessoas a acumular trabalho no MP e a trabalharem em condições desumanas», concluiu.
«Há um conjunto de lugares que são comissões de serviço judiciais que têm de ser ocupadas por juízes: no CEJ, assessores no STJ, inspetores judiciais, 23 juízes presidentes de comarcas, de relações, de supremos… Estes lugares são fora dos tribunais e, portanto, serão uns 60, 70, 80 ou 90 que não estão nos tribunais», esclarece, refletindo acerca da alegada escassez de magistrados, o presidente da ASJP, acrescentando que «o sistema tem de comportar sempre o número de pessoas suficiente para assegurar o serviço».
«Para dizer que faltam x juízes, era preciso saber que número de juízes era necessário e os Conselhos nunca produziram um trabalho que analisasse isto. É possível dizer aqueles que faltam em relação aos quadros que existem, mas não sabemos se são adequados ou não», elucida. «Tudo depende da resposta que procuramos. Se quisermos saber quantos faltam para preencher o quadro, vemos aqueles que estão em funções, aqueles que estão nas comissões e ficamos a saber».
«Mas isto não responde a uma pergunta: quantos deviam existir?», questiona, em declarações ao Nascer do SOL. «Pode haver a mais e a menos, depende muito. Não estou convencido de que faltem juízes. Não é que aqueles que estão em funções sejam suficientes, isso não sei, mas no global não estou nada convencido. Gostava de ser convencido por quem diz que fazem falta».
Notícia atualizada às 16h55 do dia 15 de abril de 2022