Na Ucrânia, a história já virara campo de batalha bem antes da invasão russa. Desde há décadas – mas sobretudo desde 2014, com a ocupação da Crimeia e a guerra civil no Donbass – que o legado desta nação, cujo nome significa literalmente “terra de fronteira”, ou ukraina, é disputado por Moscovo e Kiev. Os mitos de ambos os lados, ansiosos de reclamar como seus os mais santos dos santuários ortodoxos, têm como ponto de partida no século IX, com o Rus de Kiev. Mas vão beber também as histórias dos aventureiros cossacos que cavalgavam pelas férteis estepes ucranianas, por volta do séc. XVI. Nesses tempos, o sul e leste da Ucrânia, hoje palco principal da guerra, eram uma espécie de Faroeste, o refugio de camponeses russos e polacos, fugidos da brutalidade dos seus senhores feudais, para se depararem com constantes incursões dos tártaros da Crimeia, inimigos mortais dos cossacos, e sempre ansiosos de obter mais escravos.
Claro que o Estado ucraniano, com a forma com que o conhecemos, tem a sua base na República Socialista Soviética da Ucrânia. Mas as nações, essa categoria tão nebulosa – “o que veio primeiro, a nação ou o Estado-nação?”, questionam incessantemente historiadores – e disputada, também são feitas de histórias partilhadas. Quanto a isso, “o nacionalismo ucraniano é um nacionalismo moderno, como outros nacionalismos europeus”, nota Arturo Zoffmann Rodriguez, investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa, que antes de chegar a Lisboa dava aulas de história russa em Barcelona e na Cidade do México.
“Os ucranianos hoje falam do Rus de Kiev, na Idade Média e tudo isso depois. Mas é uma mitologia nacionalista, o Rus de Kiev não tinha uma forma nacional, não era um Estado-nação, obviamente”, explica o historiador, ao i. Ainda assim, ”o sentimento nacional já existia antes da formação da República Socialista Soviética da Ucrânia, estimulada pelos bolcheviques, até mesmo antes da revolução russa”, assegura. “No século XIX já temos o nascimento e desenvolvimento de um nacionalismo ucraniano, sobretudo entre os intelectuais, que é perseguido pelo czarismo”.
Hoje, poderia dizer-se que Vladimir Putin prossegue o mesmo combate dos czares. Como deixou bem expresso no discurso que antecedeu a invasão, a perspetiva do Presidente russo é que a Ucrânia não é um Estado real, é uma aberração, criação artificial dos soviéticos.
Na prática, são duas narrativas nacionalistas em choque. O discurso de Putin “vai à raiz do nacionalismo russo mais conservador, mais ligado à nostalgia pelo império russo, à velha direita czarista. Tem um tom explicitamente anticomunista, que liga criação da Ucrânia a Lenine e ao poder soviético nos primeiros anos da revolução”, aponta o investigador do IHC. “Isso tem uma base histórica. Não é verdade que a Ucrânia tenha sido inventada pelos bolcheviques, como ele insinuou. Mas é certo que a sua forma legal e administrativa moderna foi impulsionada pelos bolcheviques, porque tinham uma política de apoio à autodeterminação dos povos”.
Cossacos, escravatura e o amor de um sultão
Perante o avanço de tanques russos, cercando as cidades do leste da Ucrânia, a memória das cavalgadas dos cossacos e das suas aldeias fortificadas parece atual como nunca aos olhos dos nacionalistas ucranianos. ”Vamos mostrar-lhes que somos irmãos da nação cossaca”, reza o hino ucraniano, que tem sido entoado por manifestantes em cidades ocupadas como Kherson, perante as tropas russas. “É tempo de nos erguermos, de ganharmos a nossa liberdade”, apela a canção. “Oh Bohdan, nosso grande hetman”, continua, numa referência a Bohdan Khmelnytsky, o hetman – ou líder militar das hostes cossacas, eleito pelos seus oficiais – de Zaporizhzhia, entre 1648 e 1657, que levou a cabo uma feroz insurreição contra a Comunidade Polaco-Lituana. Acabando por se aliar aos russos, tornando-se vassalo do czar. “Para que é que deste a Ucrânia aos miseráveis moscovitas?”, insurge-se o hino.
Para todos os efeitos, foi um ponto de inflexão na história da Ucrânia, até então marcada pela influência do khanato da Crimeia (1441–1783), o poderoso vassalo do império otomano, sucessor da Horda Dourada – um velho inimigo do Rus de Kiev, cujas invasões fizeram com que o poder político acabasse transferido para Moscovo – e do império de Genghis Khan. Foi contra as incursões dos tártaros da Crimeia que surgiu o estilo de vida cossaco, com aldeias militarizadas organizadas em hostes, criando algumas estruturas democráticas e ficando conhecidos por serem ferozmente independentes. Este povo, afamado pela sua cavalaria ligeira, ia sendo usado como tampão entre potências regionais, entre russos, polacos e tártaros.
Então a enorme bacia do Dnipre era terra de ninguém, sendo até conhecida como os “campos selvagens”, um feudo de aventureiros, renegados, bandidos e guerreiros. Os camponeses que aqui se foram estabelecendo, atraídos por propriedade a que podiam chamar sua, frequentemente eram capturados pelos tártaros da Crimeia. Acabavam como escravos, a cuidar das quintas deste povo de cavaleiros, ou vendidos no enorme mercado de Caffa, hoje chamada Feodosia, nas margens do mar Negro. Aí, compravam-nos mercadores genoveses, venezianos, turcos, arménios, judeus ou gregos, podendo dar por si a remar numa galé no Mediterrâneo ou até no harém de um sultão.
Eram séculos em que, deparando-nos com um escravo em Istambul, era bem provável que viesse daquilo que é hoje a Ucrânia. Foi o caso de Aleksandra Lisowska, uma jovem cristã ortodoxa, oriunda de uma pequena aldeia nos arredores de Lviv, então parte da Comunidade Polaco-Lituana. Acabou raptada algures entre 1512 e 1520, passando por Caffa e sendo oferecida ao príncipe Solimão. Apesar do seu sofrimento, ganharia a alcunha de Hürrem entre os otomanos, qualquer coisa como “a sorridente”, ou Roxelana, pelos seus cabelos ruivo, acabando por se tornar a concubina favorita do futuro sultão.
Solimão obteria o cognome de “o Magnífico”, conquistando Belgrado e Rodes, cercando Viena e conduzindo o império no seu apogeu. Mas não resistiu a Roxelana, a quem dedicou poemas – “a minha amiga mais sincera, a minha confidente, a minha própria existência, a minha sultana, a minha única amante”, escreveu Solimão – jurando-lhe amor eterno e monogamia. O casamento do sultão com uma escrava chocou a sociedade otomana, mas Solimão já tinha filhos com outras concubinas, que disputariam o trono com os seis filhos de Roxelana.
A imperatriz nascida na Ucrânia tornou-se um figura incontornável na história otomana. Seria lembrada por alguns como maquiavélica, o arquétipo da madrasta má, manipulando o marido para que executasse o filho favorito que tinha com uma concubina, Mustafá, enquanto Roxelana controlava a Sublime Porta nas sombras, ajudando os filhos a assassinar os seus meios-irmãos. Outros veem-na como uma figura trágica, obrigada a mergulhar na política otomana por amor e pela escravidão, tentando salvar a vida dos filhos, bem consciente que, tradicionalmente, um novo sultão começava o reinado massacrando os seus irmãos.
Folclore e rebeldes anarquistas
A Ucrânia sempre foi uma terra de misturas, de russos, polacos e húngaros, judeus e gregos, tártaros, cossacos e outros povos das estepes. Mas algures, lá no meio, é difícil dizer quando, foi surgindo algo a que se pode chamar de sentimento nacional ucraniano.
Com o centro e sul da Ucrânia conquistado por Catarina a Grande (1762-1796) – a imperatriz chamou-lhe Novorossiya ou “nova Rússia”, um termo que Putin tem recuperado nos últimos meses – e destruído o hetmanato de Zaporizhzhia, bem como o khanato da Crimeia, esse sentimento nacional foi sendo alimentado por intelectuais, sobretudo na Galicia, no oeste do país, então sob controlo do Império Austro-Húngaro. Por toda a Europa o nacionalista romântico estava em voga, com etnógrafos, folcloristas, escritores a tentar preservar – ou, em certa medida, recriar – as histórias e lendas dos seus povos.
Na Ucrânia, o movimento foi encabeçado por Taras Shevchenko (1814 –1861), o poeta maior da literatura ucraniana, descendente de cossacos. Outras figuras teriam o seu legado disputado entre Moscovo e Kiev, como Nikolai Gogol (1809-1852), um escritor bilingue, nascido na Ucrânia e formado em São Petersburgo, autor de Taras Bulba, um romance sobre as aventuras dos cossacos de Zaporizhzhia, considerado pelo próprio Dostoievsky como o fundador da literatura russa.
O sentimento nacional ucraniano acabaria por ser capitalizado em 1917, aproveitando a Revolução de Fevereiro, antes dos bolcheviques se insurgirem em outubro. Nesse interregno surgiu a Rada, o primeiro Governo nacionalista em Kiev. Tinha como brasão o tridente azul e amarelo que hoje vemos por todo o lado, ou tryzub. Foi inspirado no selo de Volodymyr o Grande, fundador do Rus de Kiev, recuperado pelo historiador Mykhailo Hrushevsky, que liderou a Rada.
Seria sol de pouca dura, com os bolchevique a formar o seu próprio Governo, sediado em Kharkiv, dando início a uma guerra civil, que resultaria na anexação do leste da Ucrânia na URSS e do oeste na Polónia, em 1920. É que “o que vemos durante a revolução russa é uma forte mobilização de classes, que deixa a questão nacional num segundo plano”, explica Zoffmann Rodriguez. “Mas há já há um fermento nacionalista, sobretudo entre os camponeses, que é onde a identidade ucraniana é mais forte”, continua o investigador do IHC. “Temos que nos lembrar que nesta altura a população urbana da Ucrânia – hoje também há elementos disso – é muito mais russa, pró-russa, e nas cidades também há muitos judeus, polacos. Enquanto o ucraniano se fala sobretudo em zonas rurais”.
Pelo meio da guerra civil, os anarquistas conquistaram grande parte leste da Ucrânia, criando comunas autogeridas e criticando o “coletivismo burocrático” dos soviéticos. Este exército sem oficiais, comandado por assembleias, era encabeçado por Nestor Makhno, um camponês revoltado, que cresceu perto de Zaporizhzhia, a ouvir histórias sobre as revoltas cossacas do séc. XVI, ao mesmo tempo que via como os descendentes destas hostes se tornaram na tropa de choque do czar, brutalizando a oposição. Makhno lançaria uma campanha de assassinato e ataques à bomba contra o regime czarista, antes de formar um exército pioneiro na utilização de metralhadoras montadas em carroças.
A memória dos bandeiras negras ainda dá um toque bizarro à simbologia da extrema-direita ucraniana, que pintou Makhno como combatente pela independência. E o preto e vermelho, as cores dos anarquistas, um movimento à esquerda dos bolcheviques, acabaram apropriadas pela extrema-direita, que as associou à ideia nazi de blut und boden, sangue e solo. Foram usadas por Stephan Bandera, nacionalista ucraniano que levou a cabo uma limpeza étnica de polacos durante a II Guerra Mundial, bem como dos seus herdeiros políticos, o partido Setor Direito, crucial na revolução de Euromaidan, em 2014 – a bandeira preta e vermelha tem surgido recorrentemente em manifestações pró-Ucrânia, ultrajando quem está mais familiarizado com a história ucraniana.
“Hoje na Ucrânia há uma certa mitologia sobre o anarquismo, uma nostalgia sobre Makhno, que inicialmente colaborou com os bolcheviques, mas que acabou por lutar contra eles e ser derrotado”, nota Zoffmann Rodriguez. “Gostam de dar a essa luta contra Lenine e Trotsky uma conotação nacionalista, mas nessa altura o nacionalismo não tinha papel nenhum na política de Makhno. O seu movimento surge no Donbass, uma zona mais urbana, mais industrial, onde se falava sobretudo russo e até nas aldeias se falava dialetos que ficam a meio caminho entre o russo e o ucraniano”.
“Aí a identidade nacional não era muito forte e a Rada de Kiev não tinha apoio nenhum. A questão principal era a revolução social”, salienta o investigador do IHC, frisando que o conflito entre Makhno e os soviéticos “não teve que ver com a questão nacional, mas sobretudo com a política agrária dos bolcheviques, com as requisições de grão”.
Os bolcheviques de Lenine acabariam por dar autonomia aos ucranianos, estabelecendo a República Socialista Soviética da Ucrânia, integrando o oeste do país na URSS durante a II Guerra Mundial. Mas entretanto o assunto do grão voltaria à baila com a grande fome na Ucrânia, entre 1931 e 1932, também chamada Holodomor, no rescaldo das políticas de rápida industrialização e de coletivizações agrárias soviéticas levadas a cabo por Estaline. A escala da tragédia ainda é debatida entre historiadores, bem como a sua intenção, tendo a Ucrânia reconhecido que se tratou de um genocídio para sufocar tendências independentistas ucranianas.
Santos e impérios
Aos pés de uma estátua gigantesca do seu homónimo, Vladimir, o Grande, Putin prometeu “ganhar vitórias pela glória da terra-mãe, torná-la cada vez mais forte a cada geração”. Corria o ano de 2015, tinham ficado para trás os tempos do ateísmo de Estado da URSS, bem como o desprezo soviético por reis e conquistadores. E ao lado do Presidente russo, à porta do Kremlin estava Cirilo, patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, abençoando a estátua do santo que converteu os eslavos ao cristianismo ortodoxo, no século X. Ninguém mencionou foi que Vladimir construiu o seu império a partir de Kiev. Afinal, havia mau sangue entre a Rússia e a Ucrânia, trava-se uma insurreição separatista em Donbass, a Crimeia acabara de ser anexada.
Às vezes, o propósito deste monumento gigantesco era apresentado de forma explicita pelos comentadores próximos do Kremlin. “O príncipe Vladimir foi batizado na Crimeia e Putin devolveu a Crimeia à Rússia, apontou o historiador Nikolau Svanidze, à RBK. “É uma mensagem para a capital ucraniana a dizer que São Vladimir é nosso, não vosso”, concordou Alexei Venediktov, diretor da rádio Ekho Moskvy.
Putin muito gosta de se comparar ao fundador do Rus de Kiev, mas desde então as suas ambições de conquista foram travadas por um seu outro homólogo, Volodymyr – ou Vladimir, em ucraniano – Zelensky. As ambições do Presidente russo de caminhar vitorioso sob as cúpulas douradas de Mosteiro de São Miguel, nas margens do Dnipre, olhando para a enorme estátua de Volodymyr, o Grande, que se ergue sobre Kiev parecem cada vez mais distantes.
“O Rus de Kiev é apresentado como origem do império russo, mas estamos a falar de história medieval. A questão nacional, ou até o debate à volta de impérios como o russo, é muito diferente”, aponta Zoffmann Rodriguez. Talvez seja importante ter esses mitos em conta para compreender o que move o Presidente russo, mas pouco mais. “São uma arma importante do regime de Putin. Não faço ideia quão cínico é, ou quanto é que ele acredita mesmo nessa propaganda. Ainda assim é algo que usou desde o início e tem sido mais marcado desde 2014”, explica o historiador. “Acho que temos de esquecer todo esse debate sobre o Rus de Kiev. Hoje isso tem importância apenas como ferramenta ideológica do nacionalismo russo e ucraniano”.