’No fundo ainda há uma tradição japonesa invisível!’’, afirma o arquiteto japonês e um dos fundadores do Movimento Metabolista, Kisho Kurokawa, no documentário Konchuu – sobre a arquitetura japonesa moderna – lançado em 2003. O filme debruça-se sobre a Nakagin Capsule Tower, uma torre residencial e de escritórios localizada em Tóquio, construída em 1972 e que é considerada a primeira da “casa cápsula” para uso prático e permanente.
Percorrendo visões do futuro, alta tecnologia e conceitos tradicionais e de natureza, Konchuu – em português ‘Na Jarra’ – explica como os arquitetos japoneses se esforçaram, na altura, para “unir os caminhos do homem moderno com as antigas filosofias em construção”, referindo-se à tradição japonesa de construir espaços muito pequenos e fechados, criando a ilusão de um “universo separado”. Como um reflexo da comunidade japonesa modernista, a cápsula Nakagin é um “raro exemplo remanescente do metabolismo japonês, símbolo do ressurgimento cultural do pós-guerra”.
Contudo, após 50 anos de “utopia”, este complexo já começou a ser demolido, por decisão dos seus novos proprietários. Durante este meio século, a torre da cápsula foi uma síntese dos paradoxos da nossa época: um “monstro” de betão “cheio de significado moral”, um “projeto irresistível para o futuro transformador” e um exemplo de arquitetura “feia” e “bonita” ao mesmo tempo.
O seu interior revelava precisamente isso, com os seus apartamentos, repletos de carpetes coloridas e high-tech (estilo definido pelo uso de materiais industriais de alta tecnologia e construções complexas e robustas). Porém, nem essa “irreverência” foi suficiente para o manter de pé. E, na verdade, apesar das múltiplas petições que pediram a sua conservação, a decisão encerra anos de incerteza em torno da estrutura, que antes oferecia uma visão futurista da vida urbana, mas recentemente caiu em desuso, tendo-se tornado “insegura”.
Uma casa dividida em cápsulas Concluída em 1972, a torre é composta por 144 unidades construídas em fábrica e dispostas em torno de dois núcleos de betão. Cada cápsula de 10 metros quadrados, apresenta uma janela estilo vigia, com eletrodomésticos e móveis embutidos na estrutura de cada casa.
Segundo a CNN, a ideia original de Kurokawa era que as cápsulas da torre fossem substituídas a cada 25 anos. No entanto, acabaram por se transformar em “ruínas”, tornando-se obsoletas. Muitas delas já nem tinham luz nem água quente. Nestes últimos anos, a maioria dos apartamentos estavam vazios, ou eram usados apenas como armazéns. Ainda de acordo com a mesma publicação, apenas os mais bem preservados “eram arrendados para entusiastas da arquitetura durante alguns dias”.
E a história já é longa… Em 2007, a associação de moradores votou pela venda da torre a um promotor que pretendia demoli-la. Contudo, a empresa faliu durante a crise de 2008, deixando o seu destino em “banho-maria”. Mais uma vez, e depois da pandemia da covid-19, os proprietários decidiram vendê-la. Em 2021, o edifício foi adquirido pelo grupo Capsule Tower Building (CTB), que confirmou que os últimos moradores já se haviam mudado e que a demolição começaria no dia 12 de abril. Depois disso, muitas foram as petições e campanhas para tentar proteger este marco da arquitetura modernista.
O Projeto de Preservação e Regeneração da Torre da Cápsula Nakagin pediu às autoridades locais de Tóquio que interviessem e até considerou solicitar o estatuto de proteção à UNESCO. “Nenhuma das abordagens foi bem-sucedida!”, afirmou à CNN Tatsuyuki Maeda, um membro do grupo, que adquiriu 15 das cápsulas entre 2010 e a venda do edifício no ano passado.
“O Japão não tem legislação para preservar este tipo de cultura arquitetónica. É lamentável que um dos exemplos mais representativos do património arquitetónico moderno do país se perca”, denunciou. Maeda revelou que os esforços para reunir os 2 a 3 mil milhões de ienes, entre 14 milhões e 22 milhões de euros, necessários para renovar a torre e remover o amianto, “foram prejudicados pela pandemia de covid-19”.
“Desde então, o projeto mudou o foco para arrecadar fundos para reformar e reaproveitar unidades individuais na esperança de que as instituições possam procurar adquirir cápsulas isoladas”, explicou. Maeda adiantou ainda que o projeto recebeu cerca de 80 consultas, com o Centro Pompidou em Paris entre os museus que manifestaram interesse em obter uma cápsula. Já o Museu de Arte Moderna de Saitama, no Japão, já possui uma unidade no seu acervo.
O ateliê Kurokawa, que continuou a funcionar após a morte do arquiteto em 2007, depressa anunciou que pretendia preservar o edifício num “espaço digital”: “Estamos determinados a preservar as cápsulas, mesmo que o prédio seja demolido”, afirmou na altura Maeda. “Dúzias de cápsulas com relativamente pouco envelhecimento vão ser recuperadas e reabilitadas. Não há dúvida de que o prédio era famoso, mas também tinha um certo charme que atraía as pessoas. Todos aqueles que tiveram a oportunidade de lá ficar foram criativos à sua maneira. A comunidade que se formou foi realmente fascinante! Estou triste por vê-lo partir, mas espero que ele viva numa nova forma!”, acrescentou.
A importância da obra “O ‘filme’ que está a ser criado à volta desta demolição surge do facto de estarmos a falar da ‘estrela’ daquela época. É pensarmos da seguinte forma: imaginemos que temos a primeira peça de roupa da Balenciaga que tornou a marca numa estrela… Aqui estamos a perder a moldura construída de uma ideia. Passamos a vê-la em fotografia, nunca mais a vivenciamos. É essencialmente a perda da experiência”, explica ao i o arquiteto Carlos Manuel Frazão Vitorino, dono da empresa Cmfv Arquitectos e Designers Associados, Lda. Kisho Kurokawa, juntamente com outros arquitetos, protagonizou o movimento Metabolista, “que procurava fazer sínteses entre as várias culturas”, nota Frazão Vitorino.
“Como fazer de um modo de vida milenar uma cultura utilitária em betão?”, exemplifica. Além de abraçarem a tecnologia e a produção em massa, os membros do grupo de vanguarda procuravam inspiração na natureza, com componentes estruturais tratadas como células orgânicas que poderiam ser “plugadas” num todo maior ou posteriormente substituídas.
“O Movimento Moderno vinha perdendo contacto na qualidade das respostas que a sociedade lhe ia colocando. Enquanto discurso estético fundamentado na linha direita, no uso de um certo tipo de materiais universalmente utilizados e em programas e diagramas funcionais, parecia igual fosse construída na Argentina, no Japão ou nos Estados Unidos… Além de existir um desajuste manifesto à realidade urbana onde se implantava à comunidade e culturas locais”, elucida o arquiteto, reforçando que, à época, “eram muitos os arquitetos (como os construtivistas russos ou membros do movimento De Stjl) que achavam que a arquitetura devia acompanhar a evolução das comunidades para se manter como uma resposta válida para a evolução da Humanidade”. Este edifício, sublinha, pertencia também movimento brutalista.
“Os japoneses identificam-se muito com os materiais, principalmente os materiais em cru”, aponta. E o movimento moderno caracteriza-se precisamente pelo “despojamento de tudo o que era o movimento anterior: o clássico”. “Não vamos fazer de conta que as paredes são redondas quando na verdade são direitas… Não vamos colocar decoração, quando na verdade a decoração não é mais do que um acrescento inútil à vida das pessoas…”, exemplifica. Trata-se de “abandonar os arquétipos, a decoração e o realismo em prol do sentir”.
A efemeridade das obras Segundo Carlos Manuel Frazão Vitorino, foram precisamente os arquitetos no Japão, bem como o suíço Le Corbusier (um dos pais da arquitetura moderna), que desenvolveram este tipo de ideias, onde “o betão é protagonista”. “O arquiteto japonês Kenzo Tange foi o primeiro a lançar um conjunto de obras que transformaram a paisagem moderna nessa parte do mundo. Kisho Kurokawa está presente exatamente no momento seguinte.
O primeiro faz o tal conjunto de projetos e o segundo vai ainda mais longe e traz esta questão do metabolismo, da composição simples: acessos e casinhas!”, acrescenta, sublinhando que, neste caso, “as casinhas são vistas como celas da vida”. “A casa é um conjunto de celas agrupadas. É daí que nasce esta imagem”, sublinha.
Interrogado sobre a falta de manutenção deste marco da arquitetura, considera que “é tão simples como pensarmos onde nós próprios moramos”. “Estamos numa casa, a casa está lá e vai envelhecendo! Com estes edifícios não é diferente! Nestas estruturas de betão, a água vai infiltrando, as estruturas metálicas vão sendo atacadas e o prédio começa a entrar em deterioração”, continua.
“O que é importante saber é que estamos nos primórdios do betão armado à vista. Não há nenhum desejo de manutenção no sentido de: ‘Isto vai durar para sempre!’. Ninguém quer saber disso para nada!”. Por isso, há conjuntos habitacionais que se degradam. Alguns deles “não conseguem ser recuperados porque foram feitos precisamente para se deteriorar”. “Isto é um assunto transversal à comunidade mundial!”, remata.
Obras construídas para desaparecer A famosa Torre Eiffel, em Paris, que continua a ser o monumento mais visitado em França – com 300 metros de altura, manteve o estatuto de edificação mais alta à face da Terra até 1930, ano em que foi destronada pelo Chrysler Building – foi uma delas. No final do século XIX ainda se estava longe de reconhecer uma qualidade estética ao metal. E a torre, inaugurada a 31 de Março de 1889 e aberta ao público a 15 de Maio para a Exposição Universal de Paris, esteve para ser apenas uma estrutura provisória, estando previsto ser desmontada 20 anos depois da sua construção. Muitos, como o escritor Victor Hugo, consideravam-na mesmo um atentado à beleza.
Depois de inúmeras ameaças, foi preciso aguardar pela década de 1960 para que o seu destino ficasse salvaguardado e se tornasse este monumento tão conhecido, graças à sua utilidade científica: um dos últimos pisos era utilizado para fazer experiências científicas – com barómetros, pára-raios, um laboratório de meteorologia e até um escritório reservado a Gustave Eiffel para fazer observações astronómicas.
Na capital portuguesa, e da autoria do arquiteto Cottinelli Telmo e do escultor Leopoldo de Almeida, também o conhecido Padrão dos Descobrimentos foi erguido pela primeira vez em 1940 de forma efémera. Integrado na Exposição do Mundo Português, foi primeiramente construído em materiais perecíveis. Segundo o site do próprio monumento, “possuía uma leve estrutura de ferro e cimento, sendo a composição escultórica moldada em estafe (mistura de espécies de gesso e estopa, consolidada por armação ou gradeamento de madeira ou ferro)”.
Foi em 1960, por ocasião da comemoração dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, que se deu a sua reconstrução em betão e cantaria de pedra rosal de Leiria, e acrescentadas as esculturas em cantaria de calcário de Sintra. Em 1985 foi inaugurado como Centro Cultural das Descobertas. O arquiteto Fernando Ramalho remodelou o seu interior, dotando o Padrão de um miradouro, auditório e salas de exposições. Segundo a página oficial, “isolado e destacado no paredão à beira do Tejo, evoca a expansão ultramarina portuguesa, sintetiza um passado glorioso e simboliza a grandeza da obra do Infante D. Henrique, o impulsionador das descobertas”.
Contudo, a sua importância não é consensual. Há mesmo quem defenda que deveria ser demolido, face ao que representa. Em fevereiro do ano passado, quando o Parlamento aprovou um voto de pesar pela morte do tenente-coronel Marcelino da Mata (veterano da Guerra do Ultramar), Ascenso Simões e outros dois deputados do PS votaram contra. No dia seguinte, num artigo publicado no Público, o deputado defendeu que “o país esqueceu rápido o seu passado” e que, nesse sentido, o Padrão dos Descobrimentos “devia ter sido destruído”.
Por fim, há ainda os edifícios que foram construídos para durar para sempre, mas que por uma razão ou por outra acabaram por desaparecer. Foi o caso da famosa Pennsylvania Station, em Nova Iorque, cuja demolição em 1963 foi uma das mais contestadas da história. O edifício projetado em 1910 por McKim, Mead e White como uma estação de comboios que proporcionava o primeiro ponto de entrada da cidade internacional.
Embora parte da infraestrutura subterrânea tenha sido preservada, o exterior foi demolido para dar lugar ao Madison Square Garden e a Two Penn Plaza. A incursão internacional sem precedentes provocada pela demolição chegou mesmo a oferecer ainda mais “força” aos esforços de preservação arquitetónica da cidade. Dois anos depois, foi aprovada a New York Landmarks Law, salvando muitos edifícios de um destino semelhante.
“Nos dias de hoje enfrentamos um grande dilema na prática da arquitetura, construir novo vs reabilitar o existente. É o sonho/objetivo da maioria dos arquitetos, projetar e construir uma grande obra! Mas nem todos temos essa sorte”, defende Maria Cordeiro, arquiteta no MIZE STUDIO. No seu entender, a obra de Kurokawa, “precursora da temática largamente explorada hoje em dia de ‘tiny houses’, proporcionava aos seus habitantes a possibilidade de viver numa habitação com áreas reduzidas, mas totalmente funcional”.
“Caso a sua ideia original tivesse sido mantida, sendo as cápsulas substituídas a cada 25 anos, não sofrendo apenas manutenção, mas também renovações, teríamos um exemplo perfeito de uma obra de arquitetura eternamente mutável”, defende. No Japão, explica ao i, as casas cápsulas são “bastante comuns” e constituem “um perfeito exemplo de como a arquitetura pode espelhar uma certa cultura, época e sociedade”.
Tal como Carlos Manuel Frazão Vitorino, Maria Cordeiro, acredita que “um projeto de arquitetura deve responder aos problemas e necessidades dos seus utilizadores, e sendo a falta de solo para novas construções um grande problema no Japão, esta solução é vastamente explorada”.
Contudo, acredita que o “quase abandono” da obra se deve à “falta de cumprimento de manutenção do projeto inicial”: “Este projeto é estudado na maioria das universidades de arquitetura e é conhecido mundialmente! Mesmo após a sua demolição irá continuar na memória pela sua originalidade. No entanto, a clara falta de manutenção tornou as cápsulas obsoletas e infelizmente em alguns casos inabitáveis. Nem as grandes obras de arquiteturas estão livres da deterioração do tempo, sem intervenção humana”, reforça.
“Como arquitetos projetamos espaços para serem utilizados e não para estarem fechados, sem uso. Se um edifício não pode ser utilizado, deve ser reconvertido noutros usos, como vemos acontecer muitas vezes. No entanto, o custo de manutenção/reabilitação de edifícios é superior ao preço de demolição e nova construção”, sublinha, acrescentando ainda que o desenvolvimento tecnológico “tem proporcionado novas soluções de construção proporcionalmente cada vez mais baratas, que tornam as reabilitações cada vez mais dispendiosas. Para alguns proprietários e promotores imobiliários, os valores falam mais alto”, conclui.