Dois meses depois, o Kremlin está de volta onde tudo começou

Nestes dois meses desde a invasão, Putin não teve grandes vitórias a apresentar. E aposta tudo no Donbass.

Vladimir Putin pretende ter alguma vitória significativa para celebrar no 9 de maio, o Dia da Vitória, quando a mãe-Rússia comemora a sua vitória sobre os nazis, avaliam as secretas britânicas. No entanto, dois meses após o início da invasão russa, o Kremlin está de volta ao ponto de partida, o Donbass.

Mais de 11 milhões de ucranianos foram obrigados a fugir das suas casas – boa parte deles no leste russófono da Ucrânia, ameaçando quebrar o forte laço entre estas comunidades e os seus vizinhos russos – e estima-se que até 15 mil militares russos tenham sido abatidos, valores comparáveis às baixas sofridas pela URSS ao longo de uma década de ocupação do Afeganistão. Pelo meio, boa parte do mundo virou-se contra a Rússia, arruinando a sua economia com sanções, e os seus inimigos da NATO estão unidos como nunca.

Até agora, Putin tem pago um preço elevado por muito pouco. Logo nos primeiros dias, lá conseguiu rebentar a barragem construída pelo Governo ucraniano em Kherson, em 2014, que cortara uns 85% da água da Crimeia. Contudo, não só continua sem controlar Donbass inteiro, como o objetivo de criar um corredor terrestre até à Crimeia continua incompleto, graças à feroz resistência em Mariupol.

Há indicações de que Putin tão cedo não se livra dessa dor de cabeça. Ainda esta quinta-feira, numa reunião do seu conselho de segurança, ordenou um bloqueio a Azovstal, para evitar perder tropas ao tomar de assalto esta metalurgia, último reduto ucraniano em Mariupol.

Ainda assim, o falhanço de Moscovo, até agora, não significa que a guerra esteja ganha para Kiev. A desproporção militar é simplesmente demasiado grande. E o Kremlin, que nas últimas semanas tem acumulado forças no Donbass, prepara-se para apostar tudo em conquistar este território. Nem que seja para Putin ter algo que mostrar.  

A princesa de Putin

Se Putin ansiava por voltar a ganhar influência política na Ucrânia, apoiando os seus candidatos favoritos nos bastidores e financiando media pró-russos, de maneira a afastar os seus vizinhos da órbita da NATO, esse sonho estilhaçou em maio do ano passado. Viktor Medvedchuk, um oligarca amigo de Putin que liderava a Plataforma de Oposição pela Vida, surpreendera ao conquistar 34 lugares no Parlamento ucraniano, mas deu por si em prisão domiciliária com a família, acusado de traição.

“As grandes guerras às vezes começam por causa de pequenas ofensas. Um duque assassinado. Um papa furioso”, escreveu a Time. “Quando historiadores estudarem porque é que exércitos se começaram a mover na Europa durante a praga de 2021, talvez o seu interesse se vire para uma rapariga adolescente, afilhada do isolado soberano de Moscovo”.

Essa rapariga é filha de Medvedchuk, Daria, que tantas vezes passou férias com o padrinho nas margens do Mar Negro. Putin não suportou a detenção do amigo e a situação piorou em fevereiro, quando o Governo de Kiev tirou do ar os canais 112, NewsOne e ZIK, pertencentes a Medvedchuk. Eram a última esperança do Kremlin para ganhar apoio entre uma população que se virou contra si com a anexação da Crimeia. Se menos de 20% dos ucranianos viam a NATO com bons olhos em 2014, mostram sondagens da Gallup, 54% queriam juntar-se à aliança em 2021, segundo o IRI.

Suspeita-se que Putin, ainda que se preparasse há muito para enfrentar sanções, só tenha decidido invadir em cima do joelho, algures em fevereiro, quando as suas tropas já conduziam exercícios nas fronteiras da Ucrânia há meses. Mesmo membros do seu círculo próximo – os temidos siloviki, ou “durões”, em russo, ex-agentes do KGB que subiram na vida com Putin – foi apanhado desprevenido, avançou o site de investigação russo Proekt.

É um diagnóstico que bate certo com o da CIA. Apesar das secretas ocidentais terem andado meses a alertar para o risco de uma invasão, “Putin ainda estava a manter as suas opções em aberto”, explicou uma fonte ao Intercept. Toda a pressa e secretismo podem ter contribuído para as espantosas quebras logísticas que vimos no início da invasão. Como a falta de mantimentos e munições, ou as gigantescas colunas de tanques paradas às portas de Kiev, dando aos ucranianos tempo para reagir.  

O Herói do Ocidente

Os rumores da fuga do Governo ucraniano multiplicavam-se, quando Volodymyr Zelensky se chegou à frente e agarrou o seu papel de ícone da resistência.

“Estamos todos aqui”, garantiu o Presidente ucraniano, num vídeo gravado no telemóvel, no meio de Kiev, três dias após o começo da invasão. Horas antes, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, preocupado, contara que Zelensky falhara a chamada que tinham marcado. Moscovo lançara as suas forças de elite contra a capital, de helicóptero, tomando o aeroporto de Hostomel com toda a confiança de quem espera reforços em breve. Nesses dias, começava a tornar-se claro que a invasão não seria tão fácil como o Kremlin esperava.

Dizimadas as colunas ligeiras que avançaram contra Kiev e Kharkiv, forças russas dedicaram-se a tentar rodear estas cidades, enquanto tomava Kherson, no sul, e cercavam Mariupol. Tornavam-se virais imagens de ucranianos a fazer cocktails molotov, a rebocar tanques com tratores e a retirar tabuletas para confundir os invasores.

Na NATO, velhas querelas eram esquecidas, sanções sem precedentes eram impostas à Rússia – até do sistema SWIFT foram expulsos, após alguma hesitação – e mesmo a Alemanha, que recusara enviar mais do que capacetes e ajuda médica à Ucrânia no prelúdio da invasão, quebrava a sua antiga regra de não enviar armamento a países em guerra.

Desenhava-se um mundo novo e todos se questionavam por quanto tempo Pequim estaria disposta a ajudar Moscovo a contornar as sanções. Até agora, as expectativas que o apoio chinês quebrasse não se concretizaram.

Horrores nos escombros

Há dois meses, quando bombardeamentos de precisão devastavam infraestruturas militares ucranianas, sendo dado como certo que Moscovo já conquistara os céus, poucos imaginariam ver tropas russas a retirar dos arredores de Kiev, Cherniiv ou Sumy. Foram desgastadas pelo astuto uso de lança-mísseis de ombro enviados pela NATO, enquanto Zelensky se desdobrava numa tour virtual (ver página 2-3). Implorando ao Ocidente por armamento pesado e para que “fechem os céus”. Ou seja, que imponham uma zona de exclusão aérea, algo que tem sido recusado devido aos receios de uma III Guerra Mundial.

Com a apressada retirada russa dos arredores de Kiev, ficou para trás um cenário de pesadelo em Bucha, onde se encontraram centenas de cadáveres. Desde então, Joe Biden chegou ao ponto de acusar Putin de “genocídio”, um grito que já era recorrente na Ucrânia – o receio é que acham outros massacres do género escondidos noutras áreas sob ocupação russa. Particularmente em Izyum, a partir de onde invasores têm lançado as suas recentes investidas no Donbass, havendo relatos de que andam de cave em cave, com listas de gente a capturar.

Já em Mariupol, forças russas têm escavado enormes valas comuns para esconder os seus crimes de guerra, transportando os cadáveres para uma aldeia próxima, Manhush, denunciou o presidente da câmara, Vadym Boichenko, uma acusação apoiada pelas imagens de satélite da Maxar. Refugiados ucranianos têm sido arrastados para campos sob controlo russo – “as pessoas estão a ser torturadas”, relatou Boichenko ao Guardian – e o cerco aperta em redor do labirinto que é Azovstal. Com Putin a prometer não deixar “nem uma mosca” passar.