Houve um tempo em que a Abercrombie & Fitch era a marca de roupa “mais sexy e requisitada” do mundo, havendo mesmo quem a considerasse uma “ode” ao corpo perfeito. Uma época em que os shoppings eram os lugares ideais para encontros entre amigos, onde os polos às riscas eram sinónimo de ser cool e onde carregar um saco de papel estampado com uma foto a preto e branco de um homem sem camisa com o corpo musculado era símbolo de status.
A marca de moda americana criada em 1892 projetou, nos anos 90, uma “imagem de beleza exclusiva”, vendendo um sonho a todos os jovens que, à época, queriam pertencer e estar integrados na “fantasia”. No entanto, por trás do brilho, do glamour e dos modelos sem camisa, acontecia “algo sinistro, pouco moral e bastante discriminatório”. Se uma pessoa não tivesse as proporções gregas, nem um corpo hercúleo, não poderia pertencer à autoproclamada seita de Abercrombrie & Fitch e os poucos que o conseguiram eram escondidos atrás das portas dos armazéns.
“Um estado aspiracional”, descrevem muitos dos participantes do novo documentário da Netflix que coloca a nu uma das maiores polémicas do mundo da moda. Com a ajuda de ex-recrutadores, designers, jornalistas, funcionários, modelos e muito mais, White Hot: The Rise & Fall of Abercrombie & Fitch, realizado por Alison Klayman, conta a história de como uma marca outrora intocável e o seu CEO, Mike Jeffries, se viram no tribunal em mais de uma ocasião e “perderam o brilho” ao serem acusados de discriminação e racismo.
Sob a supervisão de Jeffries – atualmente com 77 anos – desde 1992 que o processo de seleção de funcionários se baseava no padrão WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant, em português Branco, Anglo-saxão e Protestante). “Contratávamos gente bonita”, afirma um ex-recrutador da empresa, Jose Sanchez, no princípio da produção. “Todos tinham de ter uma peça de roupa da marca para se sentirem integrados”, lembra uma antiga frequentadora da loja.
O consolidar da abercrombie Quando foi criada, a empresa direcionava-se para homens das elites sociais que procuravam peças mais desportivas. O antigo Presidente dos EUA Teddy Roosevelt e o escritor Ernest Hemingway eram clientes habituais. Contudo, com o passar do tempo, a Abercrombie foi-se transformando numa marca antiquada, acabando por falir no ano de 1970. Foi Les Wexner, criador da Victoria’s Secret, que a salvou, contratando Mike Jeffries para rienventá-la e o fotografo Bruce Weber para aprimorar o visual das campanhas de publicidade. E foi exatamente isso que aconteceu.
No início dos anos 90, Jeffries revitalizou-a completamente. Segundo o documentário, o CEO começou a cruzar o imaginário de classes sociais altas de designers como Tommy Hilfiger e Ralph Lauren com o lado mais sensual da imagem da Calvin Klein. “A marca criou um meio termo entre o sexo que a Calvin Klein vendia e a ideia de beto norte americano genuíno da Ralph Lauren”, explica uma antiga funcionária.
Na sequência dessa estratégia, a Abercrombie & Fitch passou a vender a imagem de modelos sobretudo homens, semi-nus e musculados, direcionada à “América branca”, que apelava ao estatuto, à ostentação e às ligações desportivas dos jovens populares na escola, os chamados jocks.
E, apesar das peças de roupa “não serem nada de outro mundo”, como chega a admitir Alan Karo, executivo de marketing e publicidade da empresa, a verdade é que isso foi suficiente para consolidar a marca. “Eles literalmente fizeram imenso dinheiro a vender roupas. Mas a publicitá-las sem roupas”, diz, por sua vez, um antigo modelo da marca, Bobby Blanski.
Uma marca pouco inclusiva Não é, pois, surpreendente que, além do recrutamento pouco inclusivo, a equipa fosse também informada da maneira como devia vestir-se e comportar-se. Nos recrutamentos, as pessoas eram avaliadas com uma pontuação que ia de “fixe” a “foleiro”. Bastava ter o nariz um pouco maior do que a norma para que a marca norte-americana não voltasse a ligar. Segundo os participantes do documentário, ao contrário daquilo que era de esperar, os funcionários deviam assumir uma postura pouco simpática, como se não precisassem dos clientes.
Além dos modelos, os vendedores de loja eram, sobretudo, caucasianos. Aqueles que não o eram, mesmo sem se aperceberem imediatamente, eram escolhidos para trabalhar na reposição dos armazéns ou em horários mais tardios, sem existir espaço para um acordo. Na época, as lojas ficaram conhecidas pela música eletrónica alta, um enorme aroma aos perfumes da marca (que enjoavam muitos) e, sobretudo, por terem sido as pioneiras na utilização de persianas castanhas que não permitiam vislumbrar o que acontecia lá dentro. Toda a gente queria possuir uma peça de roupa da Abercrombie & Fitch e seria difícil que algum jovem se deslocasse a um shopping sem lá entrar.
O processo que levou ao declínio Mas não foi preciso muito até que se percebesse que esse seria um “caminho apertado demais” para o passar dos tempos e a abertura de mentalidades. A marca começou em declínio depois de ficar realmente conotada com os jocks, os rapazes populares e desportistas dos liceus que, ao mesmo tempo, costumam ser representados como os maiores bullies.
No filme Homem-Aranha, lançado em 2002 e protagonizado pelo ator Tobey Maguire, por exemplo, o seu bully, Flash Thompson, aparece vestido com roupas da marca. Nesse mesmo ano, com o sucesso das T-shirts estampadas, a Abercrombie & Fitch utilizou um slogan sexista nas roupas femininas que dizia “Quem precisa de cérebro quando tens isto?”. Numa outra, o slogan “Wong Brothers Laundry Service — Two Wongs Can Make It White” foi mal recebido pela comunidade asiática nos EUA, resultando mesmo em protestos à porta das lojas.
Em 2004, a discriminação sistémica contra funcionários negros, asiáticos ou com excesso de peso, aliado ao descontentamento generalizado daqueles que não se sentiam “parte do grupo”, acabou por resultar num processo contra a marca de 40 milhões de dólares, o equivalente a 37 milhões de euros, por discriminação racial. Depois disso, a Abercrombie & Fitch aceitou mudar as suas práticas de recrutamento e marketing, mas nada mudou. Aliás, Mike Jeffries acabou por aprofundar ainda mais a sua “obsessão por atratividade, magreza e exclusividade”.
Em entrevistas chegou mesmo a admitir que não queria que a sua marca fosse “para todos”. A maré começou realmente a mudar quando Samantha Elauf, uma jovem muçulmana, levou o seu caso ao Supremo Tribunal depois de lhe ter sido negado um emprego por usar um lenço na cabeça. Contudo, o caminho até ao declínio de Jeffries ainda foi longo. Foi apenas em 2014 que o CEO decidiu afastar-se da empresa depois de terem sido “resgatadas” algumas das suas antigas entrevistas que colocavam a nu a descriminação que sempre promoveu ao longo da sua carreira na marca.
Foram centenas de pessoas a colocarem vídeos nas suas plataformas apelando para que toda a gente deixasse de comprar nas lojas de Jeffries. Segundo o documentário, o ex-empresário não quis prestar quaisquer declarações para a produção e, desde o seu afastamento, tem um perfil invisível na imprensa internacional.
Já a marca tem, ao longo dos anos, tentado “corrigir o passado”. Atualmente, recruta modelos de todas as nacionalidades, de todos os tamanhos, sexos e orientação sexual.
Depois da estreia do documentário na plataforma de streaming, chegou mesmo a publicar um comunicado nas suas redes sociais: “No espírito da transparência (…) queremos deixar claro que estas são ações, comportamentos e decisões que não seriam permitidas ou toleradas na empresa agora. À medida que evoluímos, sentimos o amor desta comunidade. Somos gratos pelo apoio que tivemos enquanto tomámos medidas intencionais para sermos inclusivos e acolhedores para todos. Obrigado por nos dar a chance de mostrar quem é a Abercrombie hoje e por fazer parte de quem seremos amanhã. Sabemos que o trabalho nunca termina e continuamos comprometidos em criar continuamente uma empresa da qual todos nos podemos orgulhar!”.