Imagina-se a partilhar casa com mais de 20 pessoas? Habituamo-nos a vê-lo nos filmes ou a associá-lo a residências universitárias, mas já há quem prefira morar em cooperativas habitacionais lutando contra a especulação e a solidão que, muitas vezes, assombra os residentes das grandes cidades. E, aparentemente, esse modo de vida tem tudo para correr bem. Pelo menos essa tem sido a experiência das 28 pessoas que habitam o projecto La Borda, uma cooperativa de habitação na zona de Barcelona, desenhada pelo ateliê Lacol e materializada em 2018 que, este ano, juntamente a Town House da Universidade de Kingston, em Londres, ganhou o prémio Mies van der Rohe de arquitectura, um dos mais importantes galardões do sector concedido pela União Europeia e pela Fundação que leva o nome do influente arquiteto alemão.
Já que por conta da pandemia da covid-19, em 2020, a fundação e a instituição europeia decidiram adiar a atribuição do prémio, houve dois momentos de selecção de finalistas e o período dos projectos integrados foi alargado, permitindo considerar aqueles que foram construídos entre outubro de 2018 e abril de 2021. Ao revelar o nome dos galardoados, a organização justificou a sua escolha, defendendo que ambos permitem “sublinhar a importância da arquitectura que mergulha na possibilidade de mudar formas de pensar e políticas”, bem como “a relevância da inclusão”. Os vencedores foram escolhidos a partir de uma lista de 532 obras de 41 países e a entrega dos prémios está agendada para 12 de maio.
O complexo habitacional de La Borda é descrito pela fundação como “transgressor no seu contexto, porque embora a produção habitacional seja dominada por interesses macroeconómicos, neste caso o modelo baseia-se na co-propriedade e na co-gestão de recursos e capacidades partilhadas”. Além disso, La Borda “vai além da simples cooperativa”, já que o próprio ateliê responsável também é gerido como uma cooperativa em que 14 profissionais de diferentes áreas contribuem para “promover a mudança política e urbana” a partir do coração do sistema, “baseando-se na sustentabilidade social, ecológica e económica”.
Evitar a especulação Trata-se, a todos os níveis, de um bloco de apartamentos “único” e “singular” feito em madeira e arrendado em direito de superfície – o primeiro empreendimento de apartamentos recém-construídos por transferência. Isso significa que os seus moradores, membros da cooperativa, têm o direito de lá morar e pagar uma quantia, abaixo do preço de mercado. Contudo, não são nem arrendatários, nem proprietários. Ou seja, os seus filhos não herdarão as suas casas. São, sim, “inquilinos de si mesmos” e usufruem de rendas baratas que lhes permitem poupar, e não constituir riqueza imobiliária.
O terreno onde o projeto foi construído é propriedade do município e está qualificado para habitação pública. Cada co-participante deu uma entrada de 18.500 euros, um investimento inicial que será recuperado no dia em que deixar a empresa e o seu apartamento. A construção foi financiada com empréstimos que os vizinhos pagam agora em prestações solidárias entre 400 e 600 euros, dependendo do tamanho de cada apartamento. “O momento em que começamos a trabalhar é importante. Em 2012 falou-se muito em hipotecas, em acesso à habitação. A discussão sobre como viver estava no ar. Além disso, a construção ficou mais barata devido à crise. Era agora ou nunca!”, começou por explicar Carles Baiges, arquiteto de Barcelona e morador do edifício, ao jornal espanhol El Mundo. Segundo Baiges, os membros de La Borba ficaram ligados pelos “movimentos de bairro”. Nos anos anteriores, já haviam reivindicado a reabilitação das fábricas de Can Batlló, a leste de Montjuïc, ao sul de Sants, para uso cívico. Quando a Câmara Municipal elaborou o plano urbanístico do recinto em questão, previu que alguns lotes seriam dedicados à habitação social. “Decidimos estabelecer-nos como cooperativa e insistimos em convencer a Câmara Municipal ceder-nos o terreno para desenvolver essas casas”, contou Baiges, acrescentando que o preço que cada participante paga é “metade do que custaria alugar um apartamento equivalente na área” e que, desta forma, estes “não contribuem para o ciclo da especulação”. “Há outra vantagem! Temos uma estabilidade que outros alugueres não têm. Não temos um senhorio que nos pode expulsar depois de três anos porque tem uma oferta melhor!”, frisou.
Viver em cooperativa Relativamente à dinâmica do edifício e a forma como “vive” com tanta gente, o arquiteto admite que a primeira coisa que as pessoas reparam quando o vão visitar, é a “temperatura quente das casas”. “É verdade que o meu apartamento tem 10 metros quadrados a menos do que costumam ter os equivalentes que estão no mercado. Mas, em troca, tenho acesso a uma sala de 100 metros quadrados para fazer festas, ou comemorar o meu aniversário, por exemplo. Tenho acesso a dois quartos de hóspedes e terraços. Tenho luxos que seriam inimagináveis num outro lugar ao alcance das minhas posses”, contou. Além disso, segundo Baige, os pisos de La Borda “são novos, bonitos, funcionam bem” e também “são eficientes”. Por ser feito de madeira, o edifício protege os seus habitantes do calor e do frio e gera parte da energia que consome. Interrogado se foi caro construir uma estrutura assim, o membro da cooperativa respondeu que não: “Não porque todos trabalhamos no duro por muito tempo, decidindo cada detalhe com base num processo de tentativa e erro”, explicou. “Investimos muito em carpintaria, obviamente, mas isso permitiu-nos construir tudo rapidamente e sabemos que vamos recuperar esse dinheiro em aquecimento de que não precisamos!”, elucidou.
Além da casa de cada membro, La Borda oferece aos seus habitantes uma lavandaria comum, uma cozinha para festas, dois terraços, dois quartos de hóspedes, um parque de estacionamento para bicicletas e uma sala polivalente coberta para as crianças. “Pensámos incluir um ginásio e uma biblioteca, mas essas instalações já estão no bairro, por isso, seria um investimento redundante!”, lembrou, adiantando que uma piscina também não foi opção, pois “tornaria tudo mais caro”. O arquiteto revelou ainda ao jornal espanhol estar otimista relativamente ao futuro: “Acredito que há algo mais amplo que nos une. Não somos apenas vizinhos, partilhamos um projeto… Temos comissões e mecanismos para resolver conflitos. O sucesso de La Borda vai depender de encontrarmos um equilíbrio entre a comunidade e o privado. Queremos viver de uma forma menos solitária, menos isolada uns dos outros, mas não somos uma comunidade”, sublinhou.
Cristina Gamboa, outro dos membros do coletivo de autores, já esteve duas vezes em Portugal a apresentar o projeto. Em 2021 deslocou-se a Lisboa para participar no debate Domestic Matters, associado à representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza, In Conflict, e na semana passada integrou o ciclo de conferências Campo Comum, da Trienal de Arquitectura de Lisboa e do Centro Cultural de Belém.
“O acesso ao conhecimento por parte de uma larga faixa de sociedade e a disponibilidade para se organizar coletivamente – só possível nas grande organizações – permite que a conceção aparentemente simples de uma resposta ao nível da habitação coletiva se transforme num projeto pluridisciplinar de uma complexidade nunca antes vista dando resposta a um rol de questões que há muitas décadas se vinham debatendo sobre sustentabilidade, a inclusividade e a cidadania”, começou por explicar ao i Carlos Manuel Frazão Vitorino, dono da empresa Cmfv Arquitectos e Designers Associados, Lda. Segundo este arquiteto, na conceção, “foi revista a noção exclusiva do programa ‘Habitação coletiva’ para lhe ser acrescentado espaços de interação social que completam a vida dos seus utentes enquanto comunidade no dia a dia”. Assim, explica, as habitações “são integradas com um conjunto de ‘utilidades’ como espaços flexíveis para multiuso, lavandaria, cuidados de saúde médica, espaços públicos interiores exteriores e jardins”. “Toda esta interação é fomentada e ‘catalisada’ num espaço comum central que relembra uma Ágora, um Largo ou uma Praça onde todos os caminhos e permanências são possíveis”, acrescenta.
De acordo com Frazão Vitorino, “todos os aspetos da sustentabilidade foram ponderados”: a flexibilidade das soluções espaciais, a eficiência de custo de construção aliado a eficiência energética e à pegada ecológica dos materiais foram equacionados de forma integrada. Outro aspeto notável deste empreendimento, “foi evoluir sobre a noção de ‘Empreendimento cooperativo’ fazendo a plena interação entre os vários criadores artísticos e técnicos com os construtores e os utentes finais, conferindo ao empreendimento uma capacidade de se manter como uma ‘moldura viva’ para a interação e evolução dos seus utentes na progressividade das suas vidas individuais e coletivas”, elucida, acrescentando que esta adaptabilidade à impermanência da vida é, para si, um dos aspetos que mais me impressiona neste tipo de projetos.