Adiou para este sábado (30 de abril), devido a motivos de saúde, o concerto que tinha agendado para 5 de março, em Lisboa. Está recuperadíssimo? Sim, sim, está tudo ótimo já.
Que peso tem para si ter que adiar um concerto, ainda por cima de revisitação de 40 anos de carreira? Falamos nos 40 anos mas não é uma efeméride, porque não são 40, são 46, portanto acaba por não ser um número redondo. Mas este é um concerto que tem uma particularidade, porque obedece a um conceito que eu criei em 2019 e que se chama ‘Ao Canto da Noite’. É um espetáculo que faço sozinho no palco, onde recupero algumas canções que ficaram ao canto da noite, que ficaram fora do protagonismo dos discos, de onde normalmente só sai uma ou duas canções com esse protagonismo e as outras ficam arrumadas. Há aqui uma vontade grande de recuperar algumas e dar-lhes o protagonismo que merecem. Mas, obviamente, que essas canções vêm rodeadas e levadas ao colo pelas mais conhecidas. Quando faço um concerto, gosto de me pôr nos sapatos do público, e se fosse público iria querer ouvir as canções que me são mais conhecidas e queridas. A ideia do concerto é exatamente essa. É o que eu faço sozinho, no palco, com as minhas guitarras, o que confere outras características ao concerto, comparativamente ao que se faz com outros músicos ou com uma banda.
Porque é que às vezes essas músicas ficam ‘arrumadas’? Posso falar no tempo em que elas foram gravadas, em que dos álbuns eram extraídos os singles e eram esses singles que ‘batiam’ nas rádios. Hoje em dia é a mesma coisa, faz-se uma canção e são essas que ‘batem’ na rádio – e as outras ficam esquecidas. Alguns radialistas, ou animadores, locutores, ou o que lhes quiser chamar, iam buscar canções aos chamados ‘Lados B’, por gosto pessoal. Estávamos ainda na época dos programas de autor, em que eles iam buscar as canções que, de repente, não tinham nada a ver com os singles que iam saindo. Eu assisti várias vezes a isto, eles diziam: ‘Eu sei que este não é o single, mas aquela de que eu gosto mais é desta, e é esta que eu vou passar’.
O mesmo conceito que o ‘Ao Canto da Noite’, não é? É. Havia uma questão de gosto próprio dos radialistas.
Há aqui um conceito mais a solo então, mais intimista? É um concerto em que ninguém está a obrigar ninguém em cima do palco, como outro músico qualquer está obrigado aos meus ritmos, às minhas cadências, às minhas pausas, às conversas, à maneira como me dirijo ao público, como faço a gestão do espetáculo. Se, de repente, me apetecer cantar uma canção qualquer que não está programada, canto. Os próprios técnicos estão preparados também para isso.
E da parte do público, como é que se reage a esse modelo de concerto? As várias experiências que tenho tido têm sido engraçadíssimas. Muitas pessoas no fim do espetáculo perguntam-me: ‘Mas esta canção é nova?’. E, às vezes, são canções que têm 20 e tal anos. Sou eu, sozinho com as guitarras. E o que se pretende aqui é exatamente isso, é devolver às pessoas algumas canções a que nunca foi dada importância.
É curioso. Com uma carreira de mais de 40 anos já atingiu diversas gerações, portanto há pessoas no público que se calhar estão com os filhos, que estão a ouvir as mesmas canções, mas pela primeira vez. Sim, eu próprio estava a ouvir as canções para escolher o repertório que ia incluir na lista das que ia cantar, e dava por mim a dizer: ‘Ei, já nem me lembrava disto’. Uma vez até estava a ouvir uma e pensei ‘Mas isto fui eu que escrevi?’ [risos]. Há essa surpresa quando se trata de canções antigas.
É quase uma autodescoberta? Totalmente. Dei por mim a dar atenção à mudança e à evolução da minha forma de escrever e de compor ao longo dos anos.
E o que é que mais mudou? Não sei, não consigo definir isso. Mudou muita coisa. Onde se nota mais é na forma de escrever, mas na parte da composição também. Há alturas em que complicava mais, outras em que comecei a simplificar mais, mas são coisas que descobres muito à posteriori, e consegues fazer a tua própria análise, que era impossível de fazer na altura em que compuseste essas músicas.
E o próprio mundo mudou… a escrita mudou com ele? Sim, mas eu não ando atrás disso, nem nunca andei. A forma como se compõe hoje em dia… sinto que aquilo que se procura, e que eu sinto que se deve procurar na arte, seja em que modalidade for, a beleza das coisas, é a originalidade, a impressão digital, a identidade, e não propriamente andar a correr atrás de uma metodologia de criatividade que provoca a repetição de fórmulas. Obviamente massifica aquilo que se faz, mas não tem nada a ver com aquilo que eu gosto de fazer. Não critico, não faço juízos de valor, é o que é, mas eu continuo a fazer o trabalho que fiz como escritor de canções, saindo ou não da minha zona de conforto, que tem acontecido várias vezes, é a minha identidade.
E a identidade é intemporal? Em qualquer forma de arte, a identidade e a impressão digital é primordial e fundamental. Curiosamente, muitas vezes somos ‘acusados’, entre aspas, disso mesmo, em que dizem ‘Esta canção vê-se logo que é do artista X’… mas do ponto de vista mais negativo. Mas ótimo, é exatamente isso que pretendemos, que qualquer artista pretende, que se veja os primeiros traços de uma tela, e que se perceba logo quem é o artista. Hoje em dia, por exemplo, ouves os Beatles e, quando pões um disco deles, nem que seja de longe, percebes logo que são eles. Basta os primeiros acordes.
É aí que estão os grandes músicos? Na criação de uma identidade tão marcada que décadas ou séculos depois ainda é identificável logo pelos primeiros acordes? Eu não ponho aqui medidas nem pódios. Não são grandes, nem pequenos, são eles. São. E ser já é qualquer coisa de muito bom. Nós conseguirmos ser já é extraordinário. Agora, ser grande ou ser pequeno ou outra coisa, isso aí já entra numa escala de avaliação na qual não estou minimamente interessado.
Falou da música massificada. Acha que isso ao longo dos anos tem-se intensificado? Sim, e isso traz uma coisa que se chama – não sei se o termo existe mas vou usar – a descartabilidade. Ou seja, as músicas são cada vez mais descartáveis. Não se sabe quanto tempo vão durar. Se daqui a 30, 40 ou 50 anos elas estão aí ainda, como hoje em dia estão. De repente ouves o Tony Bennett a cantar uma música com a Lady Gaga, a fazerem duetos de canções que têm 50 anos… ainda a Lady Gaga não era nascida, nem sequer projeto. Volto a dizer, não são ‘grandes’ canções. Eu penso que elas viveram este tempo todo porque tinham essa originalidade e essa identidade, e não estavam dentro de uma cadeia de produção que obedecia a uma indústria. Havia aqui uma atitude diferente, a indústria andava a reboque da arte, e não era a produção de arte que andava a reboque da indústria. Essa inversão de valores tem, de facto, as suas consequências. Há imensas histórias dos anos 50 e 60 em que a indústria se equivocou totalmente em relação àquilo que lhes era apresentado, e que, de repente, foram enormes sucessos e músicas com uma identidade que as tornou intemporais, mas que a indústria não as entendeu, porque queria outra coisa. Invertendo-se os valores…
Entramos no mundo do Spotify. É anti-plataformas? Não, não. Vamos lá ver uma coisa, vamos ver em que mundos estamos. Em Portugal, quando se fala em indústria… eu considero que, hoje em dia, não há indústria. Houve uma proto-indústria em tempos que já lá vão, e hoje em dia não há uma indústria. Há produção, mas não há aquilo a que se possa chamar uma indústria, que se compare minimamente aos países que, de facto, têm uma indústria, e que são os galácticos, que são universais. Nós temos o nosso espaço, porque não temos os mesmos interlocutores que têm outros países. Vivemos muito confinados ao que somos, que é este território em que somos 10 milhões. E ainda não tivemos a capacidade de ter outro público com massa crítica a que nos pudéssemos alargar, então temos de viver aqui com aquilo que temos. Quando passamos dos discos ao Spotify, obviamente que os valores desceram, mudaram completamente. Quando mudam esses valores, já não estamos a falar do enriquecimento do artista, mas sim da capacidade de produção. Quando começam a descer os valores, e queres produzir, tens menos capacidade financeira para conseguir produzir e para conseguir ir mais longe e arriscar. Ou seja, se eu conseguia ir gravar para outro lado qualquer, como, por exemplo, com a Orquestra Sinfónica da República Checa, eu ia, porque havia meios para isso. Hoje em dia, os valores são cada vez menores, além da própria subsistência dos próprios autores e compositores. Hoje em dia vivemos fundamentalmente dos concertos.
Se calhar daí um pouco aquela questão da descartabilidade. Ao não haver tantos meios, produzem-se coisas que acabam por morrer mais depressa, não? Eu penso que não será tanto por aí. Porque há coisas que podem ser gravadas com uma guitarra e voz e que, de repente, ganham eternidade. Dificulta a possibilidade de poderes voar e sonhar mais alto e, de repente, quereres sair e saltar para fora da zona de conforto para arriscar algo… Os meios económicos que existem hoje em dia para se trabalhar na música são muito inferiores aos que existiam antigamente. Toda a gente sabe que as plataformas pagam miseravelmente.
São mais de 40 anos de carreira, palcos, entrevistas… o que é que o motiva a continuar a contar as suas histórias? Exatamente isso. A música é aquilo que eu faço, que sei fazer, e aquilo que sempre fiz. É onde eu sinto a minha identidade. É onde eu me sinto útil, até para comigo próprio. A música tem uma vantagem fantástica em relação a outras artes, que é poderes encarar o teu público de frente e saberes o resultado real daquilo que fizeste. Isso é magnífico, é insubstituível, e faz com que tenhas constantemente essa necessidade e essa vontade de subir aos palcos. O teatro é muito assim também. Tudo o que tem esse contacto direto com o público é assim. O ator pode ensaiar uma peça durante as vezes que for necessário para a pôr em palco, mas quando está mesmo sobre o palco e se abre o pano e o público está lá… eu não sou ator, mas acredito que sintam o mesmo que nós sentimos. De repente, transformamo-nos. Somos outros. Somos os mesmos, mas somos outros.
Então o público também faz parte, de alguma forma, dessa identidade do artista? Claro, obviamente. Porque ao longo destes anos todos o público foi acrescentando. É engraçado quando sentes, de facto, a ligação intergeracional que existe.
Há pouco falou da escolha das músicas para o concerto… Qual foi o critério? É muito difícil. Há que ter as músicas todas à frente, ouvir, perceber, tocar… Saber quais é que se adaptam melhor, por exemplo, a ser tocadas só com uma guitarra. Até porque estamos a falar de músicas que estavam ao canto da noite, então não há imaginário. Posso ir buscá-las e tocá-las como no momento em que se compuseram. Ou seja, não há nenhum vício de querer ouvir com arranjos. É engraçado, há músicas que se tornaram imortais no nosso imaginário da vida toda, e que nós cantamos o riff de metais ou de guitarra de cor. Toda a gente sabe o solo de guitarra do Hotel California (dos Eagles) de cor e salteado.
Ainda há nervoso miudinho antes de subir ao palco? Há, e é bom que haja, e ansiedade e tudo. São as tais borboletas, dizemos isso de uma maneira carinhosa e existe, até porque no dia em que deixar de existir, é porque deixou de fazer sentido. Estamos a arrancar para o ponto máximo, ou seja, para aquilo a que se destina o nosso trabalho. Este é o destino final do nosso trabalho, entregar ao público aquilo que fazemos. Há dias estava a falar com uma atriz e estávamos a comparar estas coisas, estas emoções, e ela disse-me que sentia exatamente o mesmo. Uma tensão e mais, dias antes do espetáculo, quando a data se começa a aproximar, começam os sonhos. São sonhos coincidentes. Começa a vir esse estado de comoção e de emoção. Era bom que os psicólogos se pudessem debruçar sobre isto, sobre como é que se conseguem juntar tantos estados emocionais tão diferentes sem criar aqui uma crise qualquer [risos].
Até porque não é só aquele nervoso exatamente antes do concerto. São dias e semanas antes de preparação, de entrevistas… Cada dia que passa, as coisas vão subindo, mas isso é bom. Tem tudo a ver com o bom que tem aquilo que nós fazemos. Não te estão a levar para um fuzilamento, estão a levar-te para uma coisa boa, que se quer, que é agradável e boa. É assim, vais para uma fábrica de sonhos, que são teus e que foram teus quando os realizaste e quando os compuseste. São sonhos das pessoas. Há aqui uma cumplicidade. Por isso é que digo que vamos para a melhor coisa do mundo, que é sonhar.
O sonho é aqui um tema recorrente… Sim, para já são sonhos coincidentes com os sonhos que acontecem sempre nesta fase. Mas são sonhos coincidentes com essa vontade e com esse misto de emoções. A ida para um palco é sempre um mistério, e não é sobre se vai correr bem ou não. Não é isso. É o mistério de como é que os sentimentos se vão revelar, como é que o artista vai ser. Isto é um pensamento que tens e que nunca mais o vais descobrir e agarrar, porque quando o espetáculo acabou não consegues definir. Esses sonhos são coincidentes com esse estado.
Voltando ao tema da indústria, disse que éramos um mercado só de 10 milhões… mas há um outro mercado de mais de 200 milhões que parece que começa a ouvir o português de Portugal… Eu não tenho essa ideia. Tenho trabalhado bastante com músicos brasileiros, já encarei público no Brasil e tive a sensação que seria possível que isso acontecesse. Há artistas portugueses que têm sucesso em algumas áreas, mas tenho a noção que a música portuguesa não está implantada no Brasil com a dimensão com que a música brasileira está implantada em Portugal, nem de perto nem de longe. Todos nós temos amigos, conseguimos fazer espetáculos aqui e ali e podemos ser conhecidos, uns mais, outros menos. Há uns que ganharam mais nome e outros que não, mas muito, muito, muito longe daquilo que pode e que podia ser feito e que podia existir. Lembro-me de ter uma vez uma conversa com o compositor cubano Silvio Rodríguez, há muitos anos, em 1992, em que falávamos exatamente sobre isso, sobre a história do Brasil. Estávamos a almoçar e outro amigo que estava à mesa perguntava: ‘Mas por que é que vocês em Portugal não têm essa coligação com o Brasil?’. E antes de eu responder, já o Silvio estava a responder: ‘Não nos podemos esquecer que o próprio Brasil é um continente.’ E é. Um continente que produz do melhor que se faz na música, no cinema, na pintura, na literatura… e autoconsome-se. Poderá ser mais sensível à cultura norte-americana, que está lá ao pé, e à qual toda a gente é, porque é universal, mas não tem que abrir muito o olho ou o ouvido para acrescentar qualquer coisa àquilo que fazem. Não tem que se dar a esse trabalho. Mas, de facto, temos tido ao longo destes anos exemplos de parcerias, como o meu caso com o Ivan Lins, o Martim da Vila, a Daniela Mercury, a Margareth Menezes. São casos que aconteceram e que resultaram bem lá, mas que depois não tiveram continuidade. Não há continuidade.
Mas o que é que se podia fazer mais? Eu acho que está muito do lado de lá e não do nosso. As coisas ficam ali, não passam dali. A própria indústria… lá está, é aquela coisa de pensarem: ‘Para que é que vamos abrir o olho?’. Por isso, vamos continuando a trabalhar com grandes músicos brasileiros, com amigos, a produzir, e a fazer o nosso trabalho de modo a, grão a grão e semente a semente, ir deixando lá qualquer coisa e dizendo ‘Sim, nós estamos aqui’. Porque, de facto, já somos, nos meios mais intelectuais e de pessoas mais atentas, muito mais reconhecidos do que éramos antigamente. Já não somos só o povo que canta fado, somos mais que isso.
Esteve muito ligado ao movimento em torno da independência de Timor. O mundo está agora a ver uma situação de guerra a desenvolver-se… a música é mesmo uma arma de arremesso contra este tipo de situações? Uma guerra, aliás, completamente inesperada, devo dizer. A música é uma arma de sensibilização; de arremesso, acho que já basta quanto eles arremessam. A música é uma arma de sensibilização, sim, sempre foi um instrumento de cativação das vontades, dos sentimentos, das almas e da realidade, bem como de abrir os olhos às pessoas e levá-las a encarar os acontecimentos de uma outra forma. Faz parte de todo um painel de instrumentos que são necessários para que se desperte essa atenção das pessoas e que não caiam no marasmo. Como dizia o Papa Francisco, não se habituem à guerra. Porque, vendo isto a passar na televisão todos os dias, temos a tendência para pensar: ‘Ok, lá está a Ucrânia outra vez’. Como aconteceu com Timor, às vezes as pessoas diziam: ‘Eh pá, lá está este a cantar Timor outra vez’. A História não é datada, não é um iogurte, não tem prazo de validade. Se eu cantar agora, no espetáculo [de hoje] essa canção, poderá fazer sentido porque estamos num contexto parecido. Aliás, em 2000, quando foi a independência de Timor, eu disse: ‘Esta será a última vez que canto esta canção porque não fará mais sentido’. Pois, de facto, afinal, faz. A música passará, numa estética de beleza emocional muito própria, para as pessoas aquilo que é necessário, que as pessoas precisam e têm de sentir para reagir ao estado das coisas.
O artista é, necessariamente, um ativista? Um artista pode ser artista sem ser ativista? Se o artista se resume a levar diversão e entretenimento às pessoas, aquilo que faz será entretenimento, e as pessoas precisam de se entreter também. O artista não tem de ser, por si só, um interventor. Mas o artista tem sensibilidade e, por isso, é que é artista. Não acordou uma manhã e disse ‘Oh, vou ser artista’, não. É assim porque assim nasceu e cresceu, desenvolvendo essa sua condição humana. Quando sente que é necessário falar das coisas, fala das coisas, num discurso mais de ação direta ou de uma forma mais metafórica. Isso também depende muito do momento que está a viver, da situação que o envolve e que o obriga a dizer as coisas de uma forma mais metafórica, não tão direta. Das canções de protesto mais magníficas e bonitas que foram cantadas, foram baixo a censura, em que eram construídas com um universo metafórico onde saíam coisas belíssimas. Não estou a dizer que precisamos de censura para fazer coisas boas, atenção [risos]. Antes pelo contrário.
A música é do artista, e o artista tem sempre uma certa ideologia, crenças, experiências… A música é do artista até certo ponto. A música é feita pelo artista, mas depois quando é entregue às pessoas passa a ser de toda a gente. Ou aceitam ou não, ou gostam ou não, ou ouvem ou não ouvem, ou provocou alguma coisa ou não. Há ali uma fronteira em que, a partir do momento em que passa para o outro lado, deixou de ser do artista. O artista bem pode dar 300 voltas a explicar o que é que queria dizer, que o público quando a entende de uma certa forma, entende-a assim.
Mas é possível separar a arte do artista? E deve-se? Se o artista assim o quiser, mas eu penso que não. A arte é um fator endémico do artista, é como uma bactéria que existe dentro dele, faz parte de cada glóbulo vermelho e de cada elemento que existe no seu corpo e na sua unidade. Como é que se separa isso? Penso que não se separa. Quando o artista cria um boneco diferente daquilo que ele é na vida do dia a dia, quando vai ao supermercado, por exemplo, ele não está a separar a arte do artista. É ele que está ali, mas é a sua arte também.
A ideologia de um artista, ou a sua crença religiosa, afeta a forma como o público recebe a música? Especialmente durante a época do Trovante, foi associado ao Partido Comunista… Eu penso que sim, a partir do momento em que o artista as revela. Eu posso até ter as minhas crenças religiosas, vamos por aí, e posso manifestá-las na minha arte. Se o fizer, sujeito-me ao escrutínio do público. Se não as manifestar, o público não tem nada a ver com isso, porque é uma coisa que é pessoal. Muitas vezes é difícil… para já é difícil falar em nome dos outros, mas acredito que seja difícil que o artista se divorcie, ou use uma camuflagem e se esconda da sua… não iria tanto à ideologia, mas da sua postura política, religiosa, cívica, enquanto cidadão… é muito difícil que isso aconteça. Quando falamos das coisas, falamos de uma certa forma, e essa forma revela a nossa maneira de pensar e de estar na vida.
Um artista que não vai beber à sua experiência pessoal, fica ‘amputado’? Não lhe chamaria experiência pessoal. Diria antes à sua identidade enquanto cidadão. A sua cidadania.
O Trovante acabou há cerca de 30 anos. Tem saudades desses tempos? Eu tenho saudades de coisas que se passaram há quatro meses… como não? Claro que sim. O Trovante foi uma escola para todos nós, mas fundamentalmente foi uma vida. Começámos com 19 anos e acabámos homens adultos, praticamente com filhos. Tudo isso, o que passámos, vivemos e construímos, deixa, além de tudo o resto, algumas saudades de momentos fantásticos que passámos e que são irrepetíveis. Não há como matar saudades desse tempo. A única forma que temos de matar algumas saudades desse tempo é quando nos juntamos e fazemos um espetáculo. Mas, de facto, esses momentos são irrepetíveis.
As bandas também não são como os iogurtes? Não têm prazos de validade? Depende do tipo de iogurte [risos]. Depende do que estiver lá dentro. Há alguns que têm mais validade, outros têm menos. O Trovante teve menos validade porque houve membros do grupo que entenderam que deviam sair porque não se sentiam identificados e que não era aquilo que eles queriam fazer. Portanto, foi uma opção muito válida, foram fazer para outro lado a sua vida. Tentámos continuar sozinhos e chegámos à conclusão que aquilo não era o Trovante, era outra coisa qualquer, e não íamos chamar os nomes àquilo que as coisas não eram. Esse foi o prazo de validade, mas pelo menos comemo-lo todo. Não deixámos que apodrecesse ou azedasse. O que é que ficou? Ficou o património, as músicas e as canções, que faz com que nós possamos juntarmo-nos e voltar a cantar as canções como elas foram feitas.
E depois seguiu para Cuba. Já tinha ligação, mas aí é que a reforçou. Sim, porque estava num momento de indefinição grande, de orfandade de um coletivo com o qual vivi durante 16 anos e, portanto, questionei-me quem era. A questão não era tanto descobrir-me como artista, mas sim como é que ia produzir e realizar as ideias que tinha. ‘Como? Com quem? Quem é que me compreende no meio disto tudo?’, questionava-me. Ter ido para Cuba ter com o Miguel Núñez e com o Pablo Milanés, que perceberam o que é que eu queria… Eu conhecia o Pablo, não conhecia o Miguel Núñez, que era muito novo na altura, tinha 20 e poucos anos. Ele dirigiu magnificamente aquele disco e disse-me que a grande preocupação deles, mas principalmente dele, era: O Luís Represas é um músico português, tem uma identidade de não sei quantos anos, é de uma cultura que não é a nossa, gosta e sente afinidade com a nossa cultura, mas o que ele vem cá buscar não é a nossa cultura, não vem cá fazer um disco de turista, como diz um amigo meu brasileiro. Portanto ele pensou ‘O que é que temos de fazer aqui? O cuidado aqui é tratar isto com pinças e fazer com que a identidade cultural dele não se perca, com que o público dele o ouça e perceba quem é, e que possamos dar-lhe aquilo que quer da nossa música e da nossa cultura’. E, de facto, foi isso que o Miguel Núñez fez, de uma forma fantástica. No meio disto tudo, com isto, fez com que me visse ao espelho e dissesse: ‘Olha, este sou eu’.
Ao fim já de largos anos de carreira… Exatamente. Uma coisa é ser uma peça no meio de um coletivo, outra coisa é a nossa individualidade. Cada vez fui construindo mais uma identidade minha que tem tudo a ver com aquilo que vinha atrás. Quando nos perguntavam que tipo de música é que o Trovante fazia, dizíamos: ‘Não nos venham pôr rótulos, porque não temos rótulos. Para nós, a música não tem fronteiras físicas, não obedecemos a nenhum estilo ou género musical. Nós fazemos o que nos dá na tola’. E pronto, foi esse ADN que trouxe comigo.
O que é que queria de Cuba? O que é que bebeu da cultura cubana? Sei lá, vou a Cuba há tantos anos que já não são coisas assim identificáveis. Mas uma das coisas que sinto é que quando estou na rua com eles e nos encontramos somos mais um. São muitos anos de convívio e cumplicidade na música, na vida do dia a dia, no estar à mesa, com os amigos. Porque a forma de estar na vida dos cubanos às vezes é muito parecida com a nossa. São muito de estar à mesa, de família…
Olhando para o futuro… Nestes últimos dois anos e meio criei alguma barreira a perspetivar o futuro. O ‘tiro’, entre aspas, vai sendo cada vez menos à distância, vai sendo cada vez mais perto e mais curto, porque já percebemos que, de um momento para o outro, tudo muda. Aquilo que mais quero fazer e que mais gosto, que é construir música… coisas que tragam mais-valia e um acrescento às pessoas que ouvem. Que tragam mais solidariedade, amor e sorrisos. As pessoas têm que sorrir e têm que haver razões para sorrir, porque cada vez nos tiram mais essas razões.
A pandemia veio alterar muito essa perspetiva que temos… Foi exatamente a isso que me refiro. Um exemplo é o meu disco Boa Hora, que saiu pouco tempo antes da pandemia, é um disco novo. Embora a tal indústria o considere um disco antigo, não é nada disso, é um disco novo. Se não foi dado a conhecer, não aconteceu, como dizem os brasileiros, ele tem que acontecer e há que dizer: ‘Não, este trabalho está feito’. Por isso é que lançamos agora o Asas de Anjo com o Ivan Lins, e vão agora ser lançados mais uns singles para fazer com que este disco tenha o seu papel. Há coisas que são incomodativas e me fazem impressão. Hoje em dia, com a história de se ter apostado na não-venda de CDs, e sim nas plataformas, são destruídos discos. Discos que não se puseram à venda. É impressionante.