Ao longo das últimas décadas, habituámo-nos a ver o Vaticano como uma entidade neutral na arena internacional, desdobrando-se em apelos ao desarmamento e à paz, rotineiramente ignorados pelas partes envolvidas. Nem sempre foi assim. É sabido como a Igreja Católica tem uma história sangrenta, recheada de perseguições, apoio a regime brutais e tentativas de acumular poder secular.
No entanto, a era da absoluta neutralidade internacional da Santa Sé parece ter chegado ao fim face à invasão da Ucrânia, com o Papa Francisco a condenar publicamente a Rússia como um “potentado, tristemente preso em reivindicações de interesse nacionalista”, chegando a beijar uma bandeira ucraniana, que lhe foi trazida de Bucha, onde tropas russas torturaram e massacraram civis. Ainda assim, o sumo-pontífice tem tentado manter pontes com o Kremlin, afirmando-se decidido a visitar Vladimir Putin, que até agora deixou o Papa pendurado.
A atual linha diplomática do Vaticano traz à memória a sua postura durante a Guerra Fria, quando seguiu a doutrina de ostpolitik. Ou seja, de operar nos bastidores e manter canais de comunicação abertos com os mesmos regimes comunistas que perseguiam fiéis. Não era uma política consensual – muitas vezes, isso causava grande ressentimento entre as comunidades católicas, sob pressão destes regimes ateus militantes. Sente-se algo semelhante com a posição do Papa quanto à invasão na Ucrânia, tendo-se a Santa Sé abstido nas moções de condenação à Rússia pelas Nações Unidas.
Apesar da crescente condenação do Kremlin por Francisco, que até se ofereceu para enviar um navio com a bandeira do Vaticano para resgatar civis a Mariupol, alvo de “bárbaro” e “macabro” bombardeamento, como descreveu o Papa, a sua decisão de “continuar com a clássica diplomacia do Vaticano de ostpolitik, de dialogar com o inimigo e não fechar a porta, é debatível”, explicou o padre Stefano Caprio, professor de história da Igreja no Instituto Pontifício Oriental, à Associated Press. “Aqueles que estão perturbados porque o Papa não os defende mais estão certos. Mas aqueles do lado diplomático que dizem que não se podem deitar fora estas relações também estão certos. Estão obviamente em contradição”.
No entanto, entre os mais furiosos, o paralelo já não é com a Guerra Fria, mas com os tempos da II Guerra Mundial. Os críticos dizem que “o sumo-pontífice arrisca escorregar da posição de princípio para o espaço lamacento ocupado pelo Papa Pio XII, um Papa de tempo de guerra que evitou falar criticamente de Hitler e do Eixo, quando a Alemanha invadiu a Polónia e acabou por levar a cabo o Holocausto”, escreveu a ABC. Ainda hoje a Igreja Católica defende que o silêncio de Pio XII lhe permitiu trabalhar nos bastidores, de maneira a salvar a vida de judeus e de outras vítimas dos nazis. Mas há cada vez mais evidências contra essa justificação, à medida que os arquivos do Vaticano desse período vão sendo finalmente abertos.
Documentos analisados pelo jornal alemão Die Zeit indicam que o Vaticano, que assinara uma Concordata com o regima nazi em 1933, soube do massacre de judeus logo no outono de 1942, mantendo o silêncio e desvalorizando o caso. Os judeus “exageram facilmente” e os “orientais” – referência ao arcebispo ucraniano Andrzej Szeptycki, que informou o Papa dos massacres no gueto de Lviv, segundo o Haaretz – “não são um exemplo de honestidade”, escreveu um funcionário do Vaticano num relatório.
“Guerra justa”? O Papa Francisco sempre se posicionou num pacifismo radical, negando que seja possível haver uma “guerra justa”, uma noção cunhada por Santo Agostinho, algures entre o séc. IV e V, e que ainda é defendida por alguns teólogos. É uma postura que valeu ao sumo-pontífice duras críticas dos setores mais conservadores da Igreja.
“Houve um tempo, até mesmo nas nossas igrejas, quando as pessoas falavam de guerra santa ou de guerra justa. Hoje não podemos falar dessa maneira. Houve uma consciência cristã da importância da paz que se desenvolveu”, proclamou Francisco em março, citado pelo Vatican News, após uma videoconferência com Cirilo, o patriarca da Igreja Ortodoxa russa, que tem apoiado entusiasticamente a invasão ordenada por Putin. “As guerras são sempre injustas”, continuou o Papa Francisco. “Dado que é o povo de Deus que paga. Os nossos corações não podem deixar de chorar perante as crianças e mulheres mortas, junto com todas as vítimas da guerra. A guerra nunca é o caminho”.
Hoje associamos a Igreja Católica a esta postura. Mesmo nos tempos em que a administração de George W. Bush forjou a teoria das armas de destruição maciça para avançar contra o regime de Saddam Hussein, João Paulo II afirmou-se como um dos mais ferozes opositores da invasão do Iraque, alcunhando-a como uma “derrota para a humanidade”. O sereno e envelhecido Papa chegou a enfurecer-se numa reunião com Tony Blair, lembrou o Los Angeles Times, num artigo publicado em 2005, intitulado “O Papa implorou. Nós não ouvimos”.
Muitos outros conflitos tiveram ativistas católicos na frente do movimento pela paz, inclusive durante a guerra do Vietname. Contaram com nomes como Daniel Berrigan, um jesuíta que foi o primeiro padre condenado a uma pena de prisão por atividade contra a guerra, queimando publicamente a sua convocatória para a reserva militar. Berrigan, que virou ícone da esquerda católica, queria “fugir de um visão simplista da violência e da guerra”, explicou numa carta aberta, em 1976, pretendendo “criar raízes, autênticas e honestas com os pobres do Terceiro Mundo e com a classe trabalhadora”. Após ser libertado, o jesuíta invadiria uma fábrica de mísseis nucleares, destruindo a ponta destes à martelada, inutilizando-os, e espalhando sangue nas instalações.
É estranho pensar que pacifistas como Berrigan foram beber à mesma doutrina que inspirou atrocidades como as cruzadas, a inquisição, ou as guerras do Renascimento, entre a Santa Sé e os restantes estados italianos. Antes do desenvolvimento da “consciência cristã da importância da paz”, como descreve o Papa Francisco, talvez não haja melhor exemplo da belicosidade da Igreja Católica do que o consulado de Alexandre VI, que antes dava pelo nome de Rodrigo Bórgia, em finais do século XV.
É um apelido “que se tornou sinónimo de ambição cega, assassínio, incesto e tortura”, descreveu o Museu Smithsonian. Alexandre VI acabaria por ter pelo menos nove filhos, dois dos quais, César e Lucrécia, seriam amantes, conspirando para assassinar os maridos desta. As lendas e mitos deste período – que vão de orgias no Vaticano aos famosos anéis que se abriam para libertar veneno – inspirariam Maquiavel a escrever O Príncipe, um marco da ciência política, e ainda assombram a Igreja.