Carl Sagan chamou-lhe o planeta azul, um ponto azul claro, pálido, algures na Via Láctea – a icónica imagem da Terra fotografada de longe, a 6 mil milhões de quilómetros, pela Voyager 1 em 1990. Surgiu há 4540 milhões de anos, mas a história é bem mais antiga, principiou Galopim de Carvalho, numa lição em que a geologia se cruzou com a astrofísica, o curso que gostava de tirar «se tivesse idade». A quinta aula do seu novo ciclo de conversas organizado pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que tem lugar todas as terças-feiras, foi uma breve história do ar, água e chão que pisamos, que a geologia ajudou a descodificar: «Olhando para as pedras conseguimos ver a história da Terra. E as letras dessa história são os minerais e os fósseis».
Mas vamos ao início, em discurso direto: «Tudo começa assim: pensa-se que há 5 mil milhões de anos, aproximadamente, uma das estrelas da Via Láctea explodiu, que é o que acontece às estrelas no fim da vida delas. Essa explosão chama-se supernova. Ao explodir, projeta no espaço o conteúdo da respetiva massa, ou seja os elementos químicos produzidos no seu interior, acrescidos de todos os elementos que se geram às temperaturas elevadas dessa explosão».
Todo esse mar projetado, «os restos da estrela, acabam por juntar-se por força gravítica e vão dar as nébulas, nuvens de matéria. No interior dessas nuvens, sempre por contração gravítica, vai-se formar um glóbulo. Em rotação sobre si mesmo, acaba por concentrar quase a totalidade dos materiais dispersos». Formou-se assim o que viria a ser o nosso sol, mas na altura ainda não era uma estrela. «À medida que este glóbulo contraía, por efeito gravítico, foi aquecendo e aumentando a velocidade da sua rotação, criando uma protoestrela. Concentra-se um corpo cada vez mais esférico, em que a temperatura vai aumentando e, a certa altura, fica incandescente, como uma ferradura de ferro em brasa fica incandescente por elevação da temperatura».
Na altura o quase sol já brilhava, mas por estar em brasa: ainda não era o corpo luminescente a que se chama estrela. «O prosseguimento da contração elevou-lhe ainda mais a temperatura, para 12 milhões de graus, acabando então por induzir a fusão nuclear de átomos de hidrogénio em átomos de hélio. Foi aí que o sol nasceu como estrela».
Os 1,2% dos restos de estrela não integrados no sol formaram planetas com a Terra, mas não só. «Esses restos andaram ali num disco em torno do glóbulo, chocando uns com os outros, acabando por se juntar por acreção gravítica, dando origem a corpos progressivamente maiores, aquilo a que os especialistas chamam planetesimais, com cerca de um quilómetro de diâmetro ou mais». Temos exemplos destes ‘pequenos’ corpos nos asteróides que circulam pelo espaço. «Hoje caem muito poucos nos planetas porque já existe uma grande limpeza do espaço, mas nos primórdios do sistema solar a quantidade de matéria que andava aqui a chocar era imensa».
Mais tranquilos, continuemos: «Foi por acreção gravítica destes corpos, em rotação em torno da estrela, que nasceram os planetas, os satélites, os asteróides, os cometas. Os planetas mais refratários e mais densos, Mercúrio, Vénus, Terra e Marte, ficaram mais perto do sol, e os menos densos, mais voláteis e mais gasosos ficaram longe do centro».
A Terra começou por não ser totalmente esférica, um protoplaneta indiferenciado e frio, maior, que se foi contraindo pela força da gravidade, aperfeiçoando a sua forma esférica e aquecendo inicialmente até à incandescência. Diz-se indiferenciado porque todos os elementos químicos estavam dispersos pela sua massa. Mais tarde diferenciou-se um núcleo interno, um núcleo externo, o manto e a crosta, explicou Galopim. «Quando o protoplaneta atinge esta diferenciação, passa-se a chamar planeta». Um parêntese para explicar uma coisa importante: só acima de um determinado volume a força da gravidade dá uma forma esférica aos corpos em rotação. «Quando o corpo é muito pequeno fica com formas estranhas, como batatas». O corpo esférico mais pequeno conhecido tem 544 quilómetros de diâmetro: é o asteróide Pallas, descoberto em 28 de Março de 1802 por Heinrich Olbers. «Marca o limite a partir do qual os corpos aperfeiçoam a forma esférica». A Terra, que a início seria maior, contraiu e arredondou-se até aos 12 700 quilómetros de diâmetro.
Era escaldante. «A superfície da Terra era uma rocha em fusão que teria um aspeto semelhante a lava, como a da cratera do vulcão Nyiragongo, na República Democrática do Congo, que está sempre à vista. O ferro migrou para o interior, formando o núcleo. Foi nesta fase que o protoplaneta, ao arrefecer em superfície, evoluiu para um planeta diferenciado». Hoje, no centro do núcleo terrestre, a 6370 quilómetros de profundidade, a temperatura ronda ainda os 6 mil graus centígrados. No limite do manto, nos 2900 quilómetros de profundidade, os 2700 ºC. A 660 quilómetros de profundidade, no limite inferior da litosfera, os 1600 ºC, até chegar à superfície da crosta onde a temperatura é a mesma que a do ar, do tórrido deserto ao gelo dos polos.
Quando o céu chorou pela primeira vez
E vamos à história da atmosfera, que conflui na dos oceanos: «Todos os gases expelidos à medida que a superfície foi arrefecendo criaram uma atmosfera primitiva rica em vapor de água, dióxido de carbono, azoto e gases mais raros. O oxigénio só surgiu centenas de milhões de anos depois». Antes disso, apareceram os mares. «Quando a temperatura global baixou o suficiente, pensam alguns autores para valores na ordem dos 374º C e os 217 bars de pressão, todo o vapor de água que estava na atmosfera começa a chorar numa imensa chuva. Ao início pensava-se que foi toda esta água que encheu os oceanos. Surgiu depois uma corrente que diz que parte da água foi trazida por um número incomensurável de cometas, cujo núcleo é essencialmente gelo, que bombardearam a Terra nos primeiros milhões de anos da sua história. Assim parte da água dos oceanos é água da dessa chuva primordial e outra da água dos cometas. De qualquer maneira, cobre a maioria da superfície, tanto que o planeta azul foi chamado de planeta da água».
Andámos já quase mil milhões de anos: pensa-se que as primeiras formas de vida, organismos microscópicos, surgiram há 3,7 mil milhões de anos. E foi com alguns deles que passou a haver oxigénio: «Nos mares de há 3500 milhões de anos surgiram organismos primitivos com clorofila, as cianobactérias, que pela sua atividade fisiológica libertaram durante milhões de anos oxigénio. Numa fase inicial, entre 2600 e 1800 milhões de anos, este oxigénio foi aprisionado no ferro disperso a água do mar, dando origem a espessuras consideráveis de sedimentos». Deu origem a jazidas de óxido de ferro, representado em todos os continentes, matéria-prima que, praticamente, não se esgota. «Só mais tarde o oxigénio saiu das águas marinhas e se misturou na atmosfera, tendo atingido os 10% no Ordovícico há 440 milhões de anos, rondando hoje os 21%».
Os primeiros animais surgiram (metazoários), surgiram no mar, no chamado período Pré-Câmbrico, há cerca de 600 milhões de anos. Como medusas, não tinham esqueletos internos. Terá havido também excêntricos animais como os Anomalocari, ‘camarões-estranhos’, «maiores que cães».
No Silúrico, há 420 milhões de anos, apareciam os primeiros vertebrados, como os peixes agnatas, sem maxilar mas couraçados. Também aqui, surgem os primeiros seres vivos fora de água, vegetação primitiva que vestiu os pântanos. «Na floresta do Devónico, há 390 milhões de anos, vão surgir os primeiros anfíbios. Pensa-se que são descendência de peixes com barbatanas carnudas. Terão saído do mar ainda respirando por brânquias, tal e qual os girinos, passando depois a respirar por pulmões. Esses peixes são os primeiros tetrápodes, tinham quatro barbatanas que funcionavam como patinhas. Daqui aos répteis foi um passo».
No Triásico, há 230 milhões de anos, surgem os primeiros dinossauros, «muito primitivos, alguns ainda pequeninos». Os mais famosos dos filmes são os do Jurássico, há 150 milhões de anos, como os saurópodes de pescoços longos e caudas compridas. No Cretácico, há 70 milhões de anos, gigantes carnívoros como o T-Rex.
Saltamos a extinção para alcançar o Cenozoico, que começa há 65,5 milhões de anos, o tempo da vida recente. Há 20 milhões de anos, já havia animais muito parecidos como os de hoje, de equídeos a mastodontes, parecidos com os paquidermes do presente, lembrou Galopim de Carvalho. E depois, há 3 milhões de anos, viveram os australopitecus, os antepassados mais antigos do Homem. Então daí foi mesmo um salto: «Depois veio o Homo habilis, o Homo neanderthalensis e depois o Cro-Magnon, os mais antigos dos Homo sapiens, já com uma expressão muito parecida com o homem atual». Isto há cerca de 300 mil anos, em África.
«Planeta azul até quando?», terminou Galopim de Carvalho, que ao início já tinha deixado a preocupação com uma Terra que tem ‘tudo’ e que «tratamos tão mal». Alterações climáticas, a «indústria da guerra», continuou o professor, que aos 90 anos não está otimista: «Temo muito pelos meus filhos, pelos meus netos e por todos os jovens deste pais. A minha geração já não vai sofrer muito, mas a vossa vai, a não ser que se encontre um salvador qualquer que venha pôr ordem neste planeta».
Uma das perguntas serviu para ilustrar, como em termos geológicos, o planeta aguenta: «A Terra, como planeta, pensa-se que poderá existir até ao fim do sol. O sol a partir de certa altura vai crescer, vai expandir-se em diâmetro, abarcar Mercúrio, Terra, talvez Marte». Acredita-se que isto acontecerá daqui a 5 a 6 mil milhões: se assim for, o planeta ainda não vai a meio da existência.