por António Silva Carvalho
Por sua vez, a Pide, apesar do nome (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), tinha de facto por função principal manter no país um clima de medo latente que dissuadia, preventivamente, a generalidade da população de manifestar em público qualquer opinião que “pudesse pôr em risco” o governo; e, quanto aos poucos casos “perigosos de verdade”, a função da Pide consistia em tentar descobrir, perseguir, prender, interrogar, torturar e eventualmente matar essas pessoas “que punham em perigo a segurança do Estado português”, muito em especial os membros do PCP. A estrutura desta polícia política, tutelada pelo ministro do Interior, era, em resumo, composta por um director, militar e com curso superior; algumas chefias intermédias (os chefes de brigada e os inspectores), a quem cabia fazer os interrogatórios dos principais adversários ou inimigos políticos do regime; um número maior de agentes encarregados de pôr em prática os “actos mais sujos” feitos aos detidos (espancar, cuspir na cara, impedir de dormir durante vários dias, humilhar e ofender impunemente, dar choques eléctricos, etc…); e ainda os inúmeros “bufos” ou informadores anónimos, que eram pagos pela prestação desses “serviços” mas não pertenciam à estrutura da organização.
Ora bem: imagine o leitor que um alto quadro da PIDE, assaz habilidoso e oportunista (e que se tivesse mantido desconhecido do grande público), durante a época intermédia entre o regime do Estado Novo e o 25 de Novembro conseguia a façanha de, por exemplo, insinuar-se junto do almirante Rosa Coutinho, ao mesmo tempo que inventava uma narrativa pessoal falsa mas engenhosa, e capaz de ser aceite como verdadeira por alguns jornalistas influentes, levando-os a acreditar ser ele a figura mais adequada para ser apoiada pela comunicação social na próxima eleição para a Chefia do Estado.
Mutatis mutandis, terá sido mais ou menos assim que Vladimir Putin, depois de um longo percurso ascendente, como espião, no KGB (a Pide soviética), chegou a coronel dessa polícia secreta, depois a conselheiro do Presidente Yeltsin, e finalmente a Presidente da Rússia – com todo o vasto historial e treino amoral de mentiras, invenções, truques, abjecções, abusos e crimes de toda a espécie, que esse percurso necessariamente implicou.
Pois é precisamente esta demencial e perigosíssima criatura que o “democrático” PCP de agora não se atreve a pôr em causa, não obstante ele ter ordenado aos seus chefes militares que invadissem a pacífica Ucrânia, e lá destruíssem o máximo possível de edifícios (não importando nada que se tratasse de residências de civis, hospitais, escolas, igrejas, teatros ou quaisquer outros) e, é claro, matassem o maior número de ucranianos, fossem eles quem fossem – para o efeito inventando uma “justificação racional”: teria havido na Ucrânia uma “nazificação” da sua sociedade e do seu governo, e esse processo tinha de ser parado, pois representava uma “ameaça grave para a Rússia”.
Ora, se para todo o mundo ocidental existe neste “conflito militar” um comportamento de tipo nazi adoptado por algum dos estados, é sem qualquer dúvida à Rússia de Putim, e não à Ucrânia de Zelensky, que se pode fazer tal acusação – na verdade, Putin faz lembrar, cada vez mais, Adolf Hitler.
As vítimas desse comportamento não são, aliás, apenas os ucranianos, mas também os próprios russos (quer os que discordam de Putin e são presos durante anos ou assassinados, quer os seus apoiantes, que só têm acesso à informação oficial, baseada em notícias falsas mas que é a única que o Kremlin permite – já sem falar na miséria económica da generalidade da população, que só não abrange os oligarcas, todos eles ultra-corruptos, tal como o próprio presidente).
Entre a antiga União Soviética que era, para o PCP, “o Sol da Terra”, e a actual Federação Russa de Putin, ‘que venha o diabo e escolha’, pois ambas trouxeram desgraças, terror e miséria ao mundo. Mas é, ainda, pelos vistos, esta pretensa “ideologia russa” que alimenta os nossos comunistas, apesar de Putin não o ser.
De resto – como se viu durante o PREC -, a luta dos comunistas portugueses contra o regime do Estado Novo (talvez a ditadura mais branda que houve no séc. XX) não visava a instauração duma democracia em seu lugar, mas sim a imposição no nosso país duma ditadura comunista de tipo soviético, incomparavelmente pior que a de Salazar. Foi, de resto, o próprio Cunhal que o afirmou à célebre jornalista italiana Oriana Fallaci, numa entrevista que ela veio fazer-lhe a Lisboa em Junho de 1975. Eis alguns excertos:
«Entrevistar Álvaro Cunhal não é fácil (…) Entre as coisas que pensa, que quer, que em parte já obteve, está o repúdio total das liberdades democráticas. (…) Oculta o que se refere à sua pessoa, negando-se a contar se tem família e onde viveu desde a sua fuga da fortaleza de Peniche (em 1960). Parece que viveu em Moscovo e que se casou com uma russa. Paradoxalmente, é um homem simpático” (…)
“Aqui ficam as passagens mais significativas das respostas de Cunhal – que tanto escândalo provocaram em Portugal quando foram publicadas pelo ‘Jornal do Caso República’, em 27.6.1975. O PCP reagiu então à publicação da entrevista, negando que Álvaro Cunhal alguma vez tenha dito o que disse”.
– “Nós, os comunistas, não aceitamos o jogo das eleições (…) Se pensa que o Partido Socialista com os seus 40 por cento de votos, o PPD, com os seus 27 por cento, constituem a maioria, comete um erro. Eles não têm a maioria” (…)
– “Estou a dizer que as eleições não têm nada, ou muito pouco, a ver com a dinâmica revolucionária (…) Se pensa que a Assembleia Constituinte vai transformar-se num Parlamento, comete um erro ridículo. Não! A Constituinte não será, de certeza, um órgão legislativo. Isso prometo eu. Será uma Assembleia Constituinte, e já basta (…). Asseguro-lhe que em Portugal não haverá Parlamento” (…)
– (…) “Democracia para mim significa liquidar o capitalismo, os monopólios. E acrescento: não existe hoje em Portugal a menor possibilidade de uma democracia como as da Europa Ocidental.” (…)
– (…) “É um facto indiscutível que Portugal actualmente se dirige para o comunismo. A única coisa que não posso dizer é que forma assumirá esse socialismo.»
Para concluir: nós, hoje, passados quase 47 anos dessa entrevista, já percebemos (eu, pelo menos, percebi) o que significa viver num país que se mantém politicamente híbrido, ou seja, que nunca se libertou por completo dos mitos e embustes da extrema-esquerda. E o actual primeiro-ministro, de resto, com o palmarés fresquinho duma maioria absoluta, bem se pode gabar de ser um arauto eficaz das pretensas “vantagens” dessa miscigenação político-ideológica. Os portugueses têm, de novo, o governo que democraticamente escolheram. Veremos, nos próximos anos, se as promessas feitas pelo PS se cumprem, ou se eram sobretudo publicidade enganosa.
9 de Maio de 2022