Notícia atualizada no dia 09/05/2022, às 19h42
De uma ponta à outra, Monte Godel é uma aldeia com cerca de um quilómetro, onde é fácil medir distâncias. Pelo contrário, aquilo que não tem palmos a medir é mesmo a união e o espírito de entreajuda daquela população da freguesia de Santo Isidoro, em Mafra.
Esta aldeia foi construída de raiz por quatro famílias. Até à década de 60, os Reis, os Rodrigues, os Silva e os Zeferino casavam-se entre eles e selavam naquele lugar uma identidade especial. Todos os vizinhos eram tios ou primos, mais ou menos afastados, mas juntos cresceram e experienciaram muitas aventuras.
Fábio Reis tem 30 anos e lembra-se bem dos tempos de menino quando jogava com os primos «num campo onde estavam ovelhas, onde arrancavam os eucaliptos». Com «a cegueira de jogar», chegava a casa com «pregos espetados nos pés, esfolado e cabeça aberta ou com pontos».
Foi graças a Fábio Reis que os miúdos e graúdos de Monte Godel passaram dos campos de pasto, onde jogavam ao vento e à chuva, para os pavilhões.
Desde criança ganhou o desejo de tornar o nome de Monte Godel memorável e distinguível. «Eu ia para a escola e perguntavam-me: ‘De onde é que tu és? De Monte Godel. Onde é que é isso?’. Eu cresci muito com a ideia de que ninguém sabia onde era Monte Godel e muitas vezes disse a um dos meus grandes amigos: ‘Um dia, qualquer pessoa que olhar para a minha cara vai dizer: ‘Lá vem aquele gajo de Monte Godel’».
O espírito de liderança e do associativismo está no sangue dos Reis. Tanto o avô de Fábio como o pai estiveram sempre ligados ao desporto e à cultura de forma a dinamizar atividades na pequena aldeia. O clube de Monte Godel foi a chave para definir a identidade da terra. Foi em 1981 que o pai de Fábio, Carlos Reis, ajudou a construir e a fundar a Sociedade Recreativa Cultural e Desportiva do Rancho Folclórico de Monte Godel (S.R.C.D. do R.F.M.G).
Não é coincidência que o emblema do S.R.C.D. do R.F.M.G., pensado por Carlos, foi criado com o intuito de englobar todas as caraterísticas que formavam Monte Godel: o moinho, para simbolizar a farinha que era moída e que «alimentava as pessoas que viviam nesta área», explica detalhadamente Carlos; os dançarinos, que representam a fundação da coletividade – a partir das marchas populares, nasceu o rancho folclórico ; a bola de futebol, que remonta à geração do pai de Carlos, quando formavam equipas amadoras, «com espírito guerreiro»; o cacho de uvas, um fruto que não falta naquela zona e proporciona produção de vinho regional; as espigas, pela quantidade que os aldeões apanhavam – na juventude de Carlos, passou «dias a ceifar» -; e, por último, a estrela, que tem um significado especial para Carlos – é o símbolo da família Reis, encontrado por uma amiga de longa data num livro em inglês com todos os brasões de famílias. Carlos tinha um pressentimento de que o seu símbolo poderia ser a estrela dos reis magos, e «não é que tinha mesmo a ver?», vinca com um brilho nos olhos o fundador, ao explicar que a sua estrela está associada à história católica.
O início de um novo capítulo
Foi com espírito conquistador que Fábio decidiu «abrir portas» para que outros conheçam a história de Monte Godel. «A forma como somos acolhedores, trabalhadores e humildes, e queremos que as pessoas sintam isso», aponta o militar da GNR, que confiava nas qualidades do berço para avançar com o projeto, convidando «pessoas de outros lugares» para completar a equipa.
Em 2016, Fábio apresentou um projeto para criar uma equipa de futsal para competir no campeonato amador da Fundação INATEL, em Lisboa. Para avançar com a equipa, o filho assumiu o lugar do pai na presidência do Sociedade Recreativa Cultural e Desportiva do Rancho Folclórico de Monte Godel (S.R.C.D. do R.F.M.G). «Nós tentamos em cada localidade da freguesia puxar dois ou três [jogadores]», explica o então presidente no salão barulhento do S.R.C.D. do R.F.M.G. No entanto, «foi sol de pouca dura», pois o projeto foi ganhando jovens das vilas de Mafra e Ericeira, em vez das pequenas localidades nos arredores da aldeia.
Depois de endereçar uma carta aberta ao presidente da Câmara de Mafra a pedir apoio, neste caso pavilhões para que equipa pudesse treinar e jogar, reuniram-se as condições para formar o Monte Godel FSI Futsal.
Inscreveu 12 jogadores, uma escolha «conservadora», admite o líder do clube, no entanto, contra todas as expetativas, no ano de arranque, a equipa da aldeia fez um brilharete e tornou-se campeã da Taça Fundação INATEL – na época de 2017/18.
Esta vitória «mexeu com muita coisa», aponta Fábio, que desde o início da aventura até hoje se encarrega da logística da equipa – tratar dos equipamentos, do material e de encontrar condições de treino -, enquanto também pertence ao leque de jogadores disponíveis para o treinador Claúdio.
«Chegou ao ponto de o presidente da Câmara convidar a equipa toda para almoçar, queria conhecer os jogadores e dar os parabéns, pois foi algo vistoso para o município», conta entusiasmado o jovem da linhagem Reis, ao realçar que, com as fracas condições a que são sujeitos, o Monte Godel FSI Futsal ultrapassou as adversidades e destacou-se em relação a outras equipas que possuem os seus próprios pavilhões.
«Nós como um caracol, com a casinha às costas, para aqui e para ali, e no fim, deu o que deu», conta Fábio, orgulhoso do caminho que percorreu. Em duas épocas, Monte Godel arrecadou três taças: uma de campeão e duas supertaças – jogo onde a atual vencedora do torneio defronta o último conquistador do título.
Depois de duas épocas condenadas pela pandemia de covid-19, a equipa uniu-se novamente para voltar a conquistar o título de campeão. O presidente reuniu o maior grupo de jogadores (17) para a época 2021/22, que arrancou da melhor forma, mantendo-se no pódio do campeonato amador.
Mas, quando apenas dependia do seu desempenho para passar à final-four, os rapazes de Monte Godel deitaram tudo a perder na última jornada, com uma derrota em casa, no pavilhão do Clube Desportivo de Mafra, com o quinto classificado, CHE Nova Morada, equipa de Paço de Arcos.
O jogo decisivo
Dia 29 de abril, passada sexta-feira, foi o dia do jogo. Onde apenas o empate valia a passagem para a próxima fase. Numa primeira parte controlada pela equipa da aldeia, que fez dois golos em cinco minutos, o pavilhão encheu-se de palavras de apoio vindas da bancada. Mães e mulheres do jogadores de Monte Godel não falham os jogos em Mafra, colorindo de vermelho e branco a bancada, com os seus cachecóis e t-shirts. Já os pais, tios e amigos também fazem questão de acompanhar as mulheres.
Com a derrota, um lugar na final-four da Taça Fundação INATEL fica em suspenso, pois a equipa do Sporting Clube de Livramento – que está apenas a dois pontos de distância – precisa de ganhar para ultrapassar o Monte Godel FSI Futsal. Porém, se escorregar no próximo jogo, este sábado, frente ao Grupo Desportivo Recreativo Bairro Dona Leonor, sexto classificado, há a possibilidade de os rapazes da aldeia chegarem às meias-finais. Fábio, empenhado e crente até ao último segundo, acredita que ainda resta uma esperança de que «o feitiço se possa virar contra o feiticeiro».
Após o fecho da edição deste sábado do Nascer do Sol, a equipa do Sporting Clube de Livramento venceu por 3-2, eliminando assim os rapazes de Monte Godel da próxima fase do campeonato amador.
Atitude à Monte Godel
“Todos os projetos que têm aparecido são uma forma de afirmar a marca, tradição” que foi transmitida pelos mais velhos, diz Fábio, ao sublinhar o valor mais importante que lhe foi passado: a superação.
Para o presidente, esta determinação é superior às das restantes localidades, pois por melhores condições que tivessem, os rapazes de Monte Godel não deixavam de querer mais e melhor para a aldeia. “Nós sem condições mostramos que juntos conseguimos ir mais além”.
São estes valores que o dirigente quer incutir nos seus colegas de equipa, embora a idade e o lugar onde cresceram sejam pequenas muralhas que dificultam a compreensão. “Têm de experienciar para perceber”, confessa o presidente do clube, que entende que são “o conjunto de experiências, sensações, motivações que tentamos transmitir”, no fundo, “o porquê de haver algo especial” em Monte Godel.
Memórias do passado e do presente
Na sede guardam-se as memórias do que por lá passou. Numa parede recheada de cartazes da mítica festa de Monte Godel – alguns com dizeres muito à frente, adequados à revolução do 25 de abril, para o ritmo de vida aldeã, recorda com saudade Carlos -, estão uma série de medalhas e troféus conquistados pelo rancho folclórico, mas, numa esquina do salão, há uma prateleira dedicada apenas ao futsal, que está a arrebentar pelas costuras.
Noutra sala, conhecida apenas por aqueles que andam frequentemente no clube, o jovem líder mostra as restantes taças que venceu com esta equipa constituída sempre por uma mistura de velhas e novas caras. Num caixote perdido no chão, encontram-se camisolas da equipa de atletismo que Fábio decidiu criar quando simplesmente viu um grupo que tinha o hábito de correr perto de Monte Godel.
Esta é a prova de que numa pequena aldeia cabe muita ambição e muita história. Nos antepassados dos Reis, como conta o pai, esta família foi das primeiras a habitar Monte Godel. No século XIII, o “Adão” da família Reis era militar condecorado e vereador da câmara de Mafra, estando encarregue de receber os dízimos do povo. Agora, oitocentos anos depois, o presente e o futuro da aldeia continua nas mãos de um militar, o Fábio, que não desiste de carimbar Monte Godel no mapa e na vida das pessoas.