“Continua a prevalecer o medo, a vergonha e a culpa”. O alerta foi deixado ontem pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, desde o final de novembro à frente da comissão independente instituída pela Conferência Episcopal Portuguesa para investigar abusos sexuais cometidos no seio da igreja católica portuguesa nas últimas décadas.
Em Lisboa, numa conferência que serviu para um ponto de situação e para debater o trauma e a prevenção destes casos, Strecht deixou um apelo direto à Igreja e à sua hierarquia, numa altura em que crescem indícios de que terá havido centenas de casos: “A Igreja tem de continuar, através também da sua hierarquia, a vencer o medo e a perceber que se nos encomendou este estudo, o principal interesse da sua realização e da obtenção dos resultados é da própria Igreja. Vencer o medo vai ajudar cada vez mais (…) a distinguir melhor quem foram as pessoas que dentro da Igreja agiram de determinada maneira, percebendo que isso as distancia da Igreja em geral enquanto instituição”.
O plano de ação da comissão, que prevê apresentar um relatório no final do ano, foi divulgado em janeiro. Na conferência de ontem, na Fundação Calouste Gulbenkian, ficou a saber-se que há agora 326 queixas validadas pela comissão, mas os peritos acreditam que representam muito mais vítimas. “Temos 326 testemunhos recolhidos até ontem [segunda-feira], de mais homens do que mulheres, de todos os grupos etários, de todos os níveis de escolaridade e temos todas as modalidades de abuso representadas no inquérito”, afirmou a socióloga Ana Nunes de Almeida, um dos elementos da comissão, admitindo que o número de potenciais vítimas poderá atingir “muitas centenas”. “Além dos 326 testemunhos diretos, somando o número de outras pessoas que dizem ter sido vítima de abuso também, esse número sobe para muitas centenas de crianças e adolescentes”, acrescentou a investigadora.
Quanto ao acesso aos arquivos da Igreja, Ana Nunes de Almeida explicou que estará a cargo de uma equipa de historiadores sob a liderança de Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho.
Mais casos enviados ao MP Pedro Strecht revelou ainda que, além dos 16 casos que já tinham sido remetidos ao Ministério Público, em breve seguirão mais. “Enquanto coordenador da comissão, não desejo chegar ao final destes trabalhos, decorrer algum tempo que ainda possamos achar justo e, depois, ser confrontado com uma total ausência de respostas jurídicas”, apelou.
No encontro, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, reiterou o pedido de perdão às vítimas. “Espero que a vossa coragem libertadora possa motivar outros, em situação semelhante, a dar também esse passo, oferecendo um dos principais contributos para a libertação e a criação de uma nova cultura, rumo a um futuro digno, justo e acolhedor”, acrescentou.