por João Cerqueira
Ruth tem quarenta e seis anos, estatura média, cabelos castanhos e olhos azuis. É uma bióloga especializada no comportamento dos lobos. Há uma semana recebeu uma bolsa de uma instituição privada para escrever um livro sobre estes animais. Ruth defende que através do uivo pode ser estabelecida comunicação entre a nossa espécie e a deles.
Os lobos podem transmitir-nos ensinamentos sobre cooperação, solidariedade e afeto. O segredo do lobo – eis o título que pretende dar ao livro. Este é o motivo de se encontrar sozinha numa cabana na floresta. Depois do segundo divórcio, e não tendo filhos ou família próxima, os lobos tornaram-se a sua única paixão; a uma colega confessou que prefere a companhia deles à dos humanos – “os lobos não mentem”, disse.
Levantou-se às cinco e meia da manhã, tomou o pequeno-almoço e saiu para a floresta com uma máquina fotográfica, um gravador, uma bússola, um bloco de notas e mantimentos numa mochila. Há um nevoeiro que cobre o sol e se infiltra entre as árvores submergindo a floresta numa massa vaporosa que lhe recorda um sonho. Ruth avança sem receio pelo território desconhecido como se passeasse no seu jardim. Escuta a melodia do despertar dos pássaros, o zumbido de insetos e aspira os aromas frescos das árvores. Por vezes tropeça nalguma pedra ou escorrega nalgum musgo; parte os galhos que lhe dificultam a passagem e rasga as teias de aranha. Sabe que terá de caminhar algumas horas até avistar algum lobo, mas, quanto mais se embrenha na floresta, melhor se sente.
Ao contrário do que esperava, o nevoeiro, em vez de levantar, tornou-se mais cerrado. São agora nove horas da manhã e Ruth mal consegue ver um palmo à frente. Continua, porém, serena, apesar de sentir fadiga. De repente, ao longe, começa a ouvir uivos de lobos – uma espécie de lamento que perfura o nevoeiro como se a procurasse. Ruth liga o gravador e avança nessa direção. De vez em quando uiva também, convencida de que já consegue comunicar com eles. Todavia, ao fim de alguns minutos deixa de os ouvir. Volta a cabeça para todos os lados, em vão. Decide fazer uma paragem. Encosta-se a uma árvore, bebe água e come uma sanduíche. Pouco depois, é tomada de sonolência e acaba por se deitar.
Ruth é agora uma menina de três anos, loira de olhos azuis. Está com um vestido verde e sapatos cor-de-rosa. Avança pela floresta como se estivesse a brincar no jardim da casa de seus pais. Não tem medo de nada, pois sabe que os animais, tal como as pessoas, são bons e amigos dela. O nevoeiro serve-lhe para se esconder dos adultos que supõe andarem por perto. As suas pequenas mãos abrem caminho por entre os ramos das árvores. De súbito, escuta um uivo e responde-lhe da mesma maneira com a sua vozinha infantil. O uivo aumenta de intensidade e Ruth sente-o cada vez mais próximo. Corre nessa direção uivando também – está intensamente feliz.
Então, do nevoeiro aparece um lobo. É um macho de pelo cinzento e olhos laranja, com dentes afiados e uma cauda lanuda. Escorre-lhe baba pela boca.
Ruth sorri – nunca vira um animal tão belo.
O lobo senta-se a dois metros dela.
– Não te aproximes. É muito perigoso andares sozinha numa floresta – diz-lhe.
– Não é nada. Toda a gente gosta de brincar comigo – responde Ruth.
– Tu és uma menina indefesa e eu posso comer-te.
– Os lobos não comem meninas, comem cordeiros.
– E tu és um cordeiro.
Ruth ri-se.
– Não sou nada, não tenho pêlo.
– Há cordeiros sem pêlo e são esses os que despertam mais apetites aos lobos esfomeados.
– Não acredito em ti, lobo.
– Os lobos não mentem. E há um tipo de lobo que te ataca sem que tu percebas. Ele diz-te que é uma brincadeira e tu acreditas. Esses, são os mais perigosos.
–Se algum lobo me atacasse, eu ia contar à minha mãe.
O Lobo ri-se também.
– Tens a certeza? Por vezes, as meninas que são atacadas por lobos ficam tão envergonhadas, tão assustadas, tão perdidas, que não capazes de contar a ninguém. Guardam para si o segredo e, como ainda são muito novas, acabam por o esquecer.
Ruth abana a cabeça.
– Não percebo nada do que estás a dizer. Vamos brincar?
O lobo levanta-se e começa a rondá-la.
– Não. Escuta com atenção, as meninas atacadas por lobos podem esquecer o que lhes aconteceu, mas ficam com uma ferida dentro delas. Uma ferida que nunca se fechará e que as irá acompanhar a vida toda. Por vezes, essa ferida provoca uma dor tão forte que elas não aguentam mais e querem morrer.
Ruth está baralhada e não sabe o que há de de dizer. Pela primeira vez, tem medo do animal que está diante de si.
– Eu não quero brincar mais contigo. Tu és mau.
E desata a gritar pela sua mãe.
– Não vale a pena chamares pela tua mãe – diz o lobo. Ela está num motel com um amigo. E quanto ao teu pai, ele está numa reunião de negócios. Estás sozinha Ruth. Vai aparecer outro lobo que te irá apanhar. Agora estás perdida, mas talvez um dia possas sarar a ferida se tiveres coragem de a enfrentar.
Ruth abre os olhos. O nevoeiro desapareceu e a floresta brilha ao sol. Olha para o relógio e são onze horas Não sabe se adormeceu, se bateu com a cabeça nalguma árvore e desmaiou ou o que lhe terá acontecido. Não se consegue recordar de nada. Porém, está ansiosa, com uma dor algures no peito. Pela primeira vez desde que chegou, sente-se sozinha e perdida. Quer regressar imediatamente. Levanta-se com dificuldade, consulta a bússola e inicia o caminho de volta.
Mal entra na cabana, tranca a porta e pega numa faca. Vai até à janela e fica algum tempo a olhar como se na floresta se escondesse alguma ameaça. Só então liga o computador e tenta iniciar a escrita do livro, mas não consegue concentrar-se e desiste. Passa o dia sem fazer nada, dando voltas pelo recinto. Aparece-lhe uma comichão na cabeça e coça-se até sangrar. De repente, sem saber porquê, começa a chorar. Quando se domina, prepara o jantar, come rapidamente e toma quatro comprimidos para dormir. Depois atira-se para a cama.
Ruth tem de novo três anos e está na creche à espera que a venham buscar. Tem um vestido verde e sapatos cor-de-rosa. A professora vem dizer-lhe que recebeu um telefonema da sua mãe a avisar que não pode ir buscá-la. Em sua vez, irá o seu padrinho, o senhor Gabriel. Ruth não se importa – gosta muito dele. Dali a dez minutos, o padrinho aparece, dá-lhe um beijo e leva-a para o seu carro.
– Ruth, a tua mãe está a trabalhar e pediu-me para ficar contigo até ao jantar. Vamos até à minha casa.
– Sim, vamos brincar padrinho?
– Vamos. Hoje vai haver uma nova brincadeira, mas é segredo. Não contamos a ninguém. Prometes?
– Prometo padrinho.
– Linda. Olha, trouxe-te uma prenda.
Ruth abre a caixa que lhe é oferecida. Os seus olhos azuis brilham.
– Um cordeirinho de peluche. Mééé.
O carro entra numa zona de nevoeiro e Ruth vê tudo cinzento.