O novo indicador proposto para avaliação de médicos de família nas Unidades de Saúde Familiar do tipo B na área do planeamento familiar, que ontem ficou a saber-se que afinal não vai avançar nas mudanças que geraram polémica – penalização dos médicos se as utentes fizessem IVG ou tivessem doenças sexualmente transmissíveis -, continha “erros científicos”. Ainda antes deste desenvolvimento, Maria João Tiago, médica de família e dirigente do Sindicato Independente dos Médicos, membro da Comissão Técnica Nacional de contratualização de indicadores para as Unidades de Saúde Familiar, que não foi ouvida neste processo de revisão, explicou ao i que um dos erros mais gritantes podia ler-se nas listas de doenças sexualmente transmissíveis a avaliar, onde foi incluída a candidíase genital feminina, que não é considerada uma DST. “Pode resultar por exemplo da toma de um antibiótico”, diz Maria João Tiago, continuando com a incredulidade pela forma como o Grupo de Apoio técnico à implementação das Políticas de Saúde nos Cuidados de Saúde Primários propôs o indicador sem passar pela comissão técnica nacional de acompanhamento onde estão representados os sindicados médicos e de enfermagem e também as ordens.
Outra questão que levanta dúvidas surge noutra alínea da tabela (esta mantém-se, mas já lá vamos), para avaliar a acessibilidade dos médicos em situação de doença aguda e em que se preconiza que seja usado como critério de avaliação os médicos terem passado pelo menos uma receita de analgésicos ou antibióticos ao longo do ano. “Em que medida é que ter feito uma prescrição de analgésicos ou antibióticos avalia um bom planeamento familiar? Enquanto médica vou ser avaliada por uma mulher ter feito uma IVG ou ter tido uma candidíase?”, questionava a médica.
Ao final do dia, ficou a saber-se que as mudanças que esta semana incendiaram a AR não vão avançar, sem referir estes problemas concretos. «Há indicadores tecnicamente bons, mas socialmente maus e estes eram casos desses», disse ao Expresso João Rodrigues, responsável pela proposta, adiantando que os médicos de família já não serão avaliados pela quantidade de IVG e doenças sexualmente transmissíveis detetadas.
O que dizia mesmo a grelha No debate no Parlamento, a ministra da Saúde afirmou que o direito à IVG não é uma discussão no país, considerando no entanto que não se pode ignorar que uma IVG tem consequências de saúde e que é isso que, na sua visão, está em causa a avaliar, tendo referido também a ideia da IVG como falha do planeamento familiar.
Ora na proposta de indicador, que apesar de não estar validado já estava no site de suporte à monitorização dos cuidados primários SDM@SNS – tendo voltado ontem ao final do dia à versão prévia – o que surgia como critério a avaliar não era ter havido uma IVG por algum défice de assistência e acompanhamento por parte do médico de família ou a verificação de uma consequência de saúde para a mulher dessa decisão, mas apenas ter existido ou não uma IVG nos 12 meses anteriores. “Ausência de IVG – Ausência de interrupção voluntária de gravidez (IVG) nos 12 meses que antecedem a data de referência do indicador”, lia-se na versão alterada.
Na versão base mantém-se por exemplo a questão dos analgésicos mas os médicos são essencialmente avaliados por garantirem que as suas utentes mulheres têm pelo menos uma consulta de planeamento familiar a cada três anos, fazem rastreio do cancro do colo do útero e por registarem contracetivos usados (ou se não usados), caindo outra novidade: serem penalizados por exemplo se mulheres fumadoras (15 ou mais cigarros por dia) tomarem a pílula.
O Bloco de Esquerda deu entrada com uma proposta de lei para alterar a regulamentação do planeamento familiar, para que passe a abranger todas as pessoas em idade fértil e não apenas mulheres. O objetivo é eliminar discriminações de género na prática clínica. Conta também para a avaliação, que é usada no matriz maior de indicadores para definir benefícios salariais atribuídos às equipas, os utentes terem médico e enfermeiro de família pelo menos 9 dos 12 meses avaliados.
Ao i, Maria João Tiago alertou que há outros indicadores inconsistentes, nomeadamente na área da saúde infantil, em que pode ser motivo de penalização uma criança das suas listas de utentes ter ido à urgência sem ficar internada, dando como exemplo uma criança que parte uma perna e tem de ir a uma urgência dado que o gesso não é colocado nos cuidados primários. Maria João Tiago considera que este processo é revelador de uma “crescente burocratização” da prática médica, alertando que terá como resultado uma crescente desmotivação dos médicos para ficarem a trabalhar no SNS.