Querida avó,
Num instante entramos em maio.Finalmente conquistámos a liberdade de andarmos sem máscara.
Por falar em liberdade, hoje apetece-me falar de Maria Barroso, uma grande defensora deste e de outros valores.
As gerações mais velhas sabem perfeitamente quem foi esta mulher. Se fosse viva celebrava 97 anos esta semana.
Maria Barroso sempre foi uma mulher muito à frente do seu tempo. Também não é de admirar, uma vez que era neta de avós – maternos – divorciados (o que na altura era coisa rara), e filha de uma professora primária e de um tenente do exército, que foi preso e deportado para os Açores. O pai de Maria Barroso era do reviralho (havemos de falar disto noutro dia), logo lhe foram incutidos, desde cedo, valores que fizeram dela a pessoa que foi.
Maria Barroso era de estatura baixa, no entanto, sempre a vi de cabeça erguida, na defesa dos direitos das mulheres e de uma sociedade menos desigual. Provou que as mulheres não se medem aos palmos.
Casou, por procuração, com Mário Soares que estava preso e dirigiu o Colégio Moderno quando o sogro morreu.
Tinha tudo para ser uma grande atriz, para ser uma grande política … mas foi, sem dúvida, uma grande Mulher!
Recordo-me de numa entrevista lhe perguntarem: «Atrás de um grande homem (Mário Soares) existe uma grande mulher?».
Maria Barroso, que viveu grande parte da vida numa época em que as mulheres não tinham voz, muito menos poder de decisão, responde ao jornalista com a sua frontalidade corajosa: «Ao lado de um grande homem está uma grande mulher. Por que razão a mulher deve estar atrás do homem? Em muitas situações a mulher até está à frente do homem!».
Celebrámos recentemente o Dia da Mãe. Como não podia deixar de ser, Maria Barroso também foi uma grande mãe.
Havemos de combinar uma entrevista com o João Soares para falarmos disto tudo e muito mais.
Não podemos permitir que pessoas como esta sejam esquecidas.
Bjs
Querido neto,
Fui amiga da Maria Barroso, uma coisa de que me orgulho muito. Para mim ela foi sempre uma grande atriz. Terem-na proibido de representar foi mais um crime do Estado Novo.
Entrou para o Teatro Nacional em 1944, pela mão de Amélia Rey Colaço, com a peça Benilde ou a Virgem Mãe, de José Régio. Ainda conseguiu aguentar-se no Nacional até 1947, mas a Pide obrigou-a a sair por «interpretar textos subversivos». Mesmo assim, por essa altura ela ainda declarava em entrevistas «o teatro é a minha profissão definitiva». David Mourão Ferreira um dia escreveu: «É uma das raras atrizes portuguesas com sentido do trágico».
Na chamada Primavera Marcelista, com um leve abrandamento da censura, lá conseguiu subir de novo à cena no Teatro Villaret, com a peça Antígona, em 1965. E aí pude vê-la. E ainda hoje me lembro daquela mulher aparentemente frágil e que enchia o palco.
Mas a Primavera Marcelista foi de breve duração – e tudo voltou ao mesmo.
Presa pela Pide várias vezes (dizia que sempre que a Pide a levava ela ia muito bem arranjada para não parecer uma mulher derrotada) nunca abriu a boca .
Sem poder trabalhar no teatro, candidatou-se ao ensino oficial – onde a Pide também não a deixou entrar, tendo então passado a ensinar no Colégio Moderno (ensino particular) que pertencia ao sogro.
Mas se vou contar toda a vida dela, o jornal não tem espaço. A partir do 25 de Abril (foi uma das fundadoras do PS) nunca mais parou, lutando sempre contra a exclusão social, a violência, defendendo a causa das mulheres, pertenceu à Cruz Vermelha, fundou a organização Pro-Dignitate.
De vez em quando falava com ela ao telefone. Um dia liguei-lhe:
— Ai Dra., estou mesmo estafada! Vim ontem do Porto, amanhã vou para Castelo de Vide, daqui a uns dias para Caminha…
— Ai, minha filha, como eu a compreendo! Amanhã vou para Moçambique, de lá para a África do Sul, depois para o Paquistão…
Não voltei a abrir a boca.
Bjs