Nos últimos meses o presidente russo fez dois discursos que mudaram o mundo.
A 23 de fevereiro anunciou que era necessário desnazificar a Ucrânia e que esta era, no limite, um erro histórico, sem grande razão de existir. No discurso de 9 de maio, dia da vitória russa na ‘Grande Guerra Patriótica’, Putin apareceu não como o líder político que era, mas como o líder político que sobrou: alguém que procura desesperadamente uma saída para um conflito onde não se devia ter metido.
Entre 23 de fevereiro e 9 de maio aconteceu a Putin o que acontece a todos nós: a realidade impôs-se. A 23 de fevereiro Putin vivia com a memória das invasões da Geórgia (2008) e da Crimeia (2014) e do sucesso na Síria dos últimos anos. Putin acreditava, e tinha razão para ter essa perceção, que os EUA estavam em retirada de algumas geografias e que estavam centrados nos seus problemas internos.
Paralelamente, tinha construído uma teia de interesses com estados europeus vizinhos (nomeadamente fornecimento de energia barata), que envolviam elites desses países, que impediam a tomada de decisões que lhe dificultassem muito a vida.
Agora, a 9 de maio, o discurso centrou-se numa guerra preventiva perante o possível alargamento da NATO (que quereria no futuro atacar a Rússia) e na ocupação do leste da Ucrânia (o Donbass), supostamente com maioria de população russófila, que deveria abraçar os russos à chegada, mas que, curiosamente, os combate como se estivesse a lutar pelas suas famílias e pela sua terra (como efetivamente está).
De 23 de fevereiro a 9 de maio passámos de uma versão maximalista, para uma versão de cumprir mínimos e sair.
Esta Federação Russa, potência revisionista do sistema, desejosa de voltar a ocupar um lugar que entende ser seu, ator principal no sistema, esqueceu alguns factos essenciais, que convém recordar: tem um orçamento militar inferior a 8% do dos EUA (62 mil milhões de dólares, contra 778 mil milhões); um PIB global de 7% do dos EUA (1,48 triliões de dólares, contra 20,89 triliões de dólares); um PIB per capita de 16% do dos EUA (10120 dólares contra 63320 dólares); e vai confrontar-se com um problema demográfico complexo (prevê-se que, até 2050, perca 10 milhões de habitantes, passando de 146 para 136 milhões de habitantes), que poderá colocar em causa a defesa das suas fronteiras.
Este não é, naturalmente, o retrato de uma superpotência, mas o de uma potência em declínio, cujo principal instrumento de poder é o da chantagem energética sobre os vizinhos e da chantagem nuclear sobre o resto do mundo.
Ainda que a Rússia seja globalmente um ‘urso de papel’, tal não significa que não seja capaz de criar problemas, como fez nas intervenções do passado recente e como tem feito agora, na Ucrânia. Mas um ‘urso de papel’ nunca será determinante na organização do sistema internacional.
A próxima jogada, decorrente da aposta (até ver errada) da invasão da Ucrânia, está relacionada com a perda da influência nos países vizinhos, que sentem ter na NATO o seu guarda-chuva protetor.
O final da Guerra Fria trouxe elevadas preocupações com a governação do colosso russo. O fim da guerra da Ucrânia trará preocupações semelhantes. A Rússia mantém disputas fronteiriças diversas, tem problemas internos adormecidos pelo músculo repressor de Moscovo e teve influência direta em alguns conflitos nos últimos anos (Síria e República Centro Africana).
A ambição do ‘urso de papel’ poderá ter libertado forças que o próprio não será capaz de conter. Quando a maré baixa, vemos quem nada nu.