Claro que temos de trabalhar. E claro que temos de ter uma vida em que a estrutura encaixe minimamente: casa limpa, fins de semana acolá, usar o ‘se faz favor’.
Mas e se quisermos ser cães? Vasculhar o lixo da vida, adormecer bêbado numa esplanada, dar conversa a gangsters? E se for essa a nossa vocação? Quem me garante que não nasci para ser um cão vadio?
Claro que tenho um LinkedIn perfumadérrimo. E claro que sou muitíssimo bem comportado à mesa. E claro que ouço Miguel Araújo e vejo os doirados da vida que também quero para mim. Claro! Claro que jogo esse jogo com destreza.
Mas se me sinto cão vadio, porque não assumi-lo?
Já imagino a publicação no LinkedIn:
«Tenho o prazer de anunciar que, ontem de manhã, após uns valentes gins no Lux, adormeci bêbado na esplanada onde ia pedir a última cerveja. Neste momento de felicidade, não queria deixar de agradecer aos meus pais – que sempre me apoiaram incondicionalmente – e à Discoteca Occhio, alma mater onde me formei não só como copofónico, mas também como depravado».
«Parabéns, Henrique». «Felecitaciones, Henrique». «Superb, Henrique» – comentam amigos de todo o mundo.
Claro que estou errado e vós certos. Claro que sou infantil e vós maduros. Claro que sou instável e vós estáveis. Mas e se eu quiser ser errado, infantil e instável? O certo é estéril, o maduro vira podre e a estabilidade aborrece-me. Não quero um cruzeiro com empregados a servir-me de smoking: quero um barco de madeira que esteja em risco de naufragar. Já sei que as árvores não dão tigres – dão frutos. Mas o que fazer se me excita mais uma árvore que dá tigres do que uma que dá frutos? Não é necessariamente o clichê de ‘não encaixar’ e sentir-se mal por isso. É, sim, o de necessariamente fugir do ‘encaixe’ como o diabo foge da cruz. As pecinhas encaixadas umas nas outras angustiam-me, saber que depois de sábado vem domingo aborrece-me e a roda dos alimentos irrita-me: a ordem existe para termos o gozo de a esventrar.
Quero partir os dentes na calçada de Lisboa e acordar a tresandar a cerveja. E quero conhecer um drag queen com sida que veio ilegalmente do Nepal e que – plot twist – até faz aquilo pela família. Quero o mundo mágico – não esta perfeição das All Stars e pessoas bonitas. Quero a catarse das cores, do que não conheço, do que está por vir – não a lenga-lenga do sábado nas Docas.
Um cão vadio com pulgas é mais interessante do que um Golden Retriever com pelo de seda. O vadio está inquieto e tem sempre comichões. O Retriever está completo e é feliz – e isso perturba-me.
A completude assusta-me. Por vezes sou abalroado pela sensação de que a vida está vista. Passado algum tempo lá me levanto, esperançoso, percebendo que, afinal, até não está. Que ainda tenho pulgas para coçar, novas fontes onde beber, novos lixos onde comer. Isto sabendo que no momento em que voltar a estar saciado voltarei às garras do ennui, onde serei domado pela tristeza. Na rugosidade dessa parede percebo que a minha salvação é a casa de onde fujo. Percebo, aí, que a minha tristeza – que vive e sempre viverá em mim – só é suportável numa casa inteira e limpa, num carinho quente e maternal, num abraço largo e feliz.
O cão sai de casa porque precisa de ir apanhar pulgas. Consciente, todavia, de que viveria perdido caso não tivesse casa para onde voltar. Foge à estabilidade por não conseguir viver só nela e para certificar-se de que, sem ela, também não. O equilibrismo vai sendo giro: até ao dia em que ninguém lhe abre a porta.
Lisboa, 10 de maio de 2022