Há mortes que nos trazem o gosto da terra à boca… a sensação de um cordel a estrangular-nos, ou o cheiro da pólvora, depois do rugido das balas, enquanto procuramos esse detalhe, o furinho por onde entrou a bala, devastando as carnes. Vamos um pouco na morte dos outros, como dizia Dinis Machado. Ainda antes de se chegar à idade em que estalam os ossos moídos de choques, ou em que as veias começam a ceder à inundação do esforço, das toxinas do tempo ou do tabaco, entre outros vícios, há o embate impiedoso desse chão que nos é arrancado ao imaginário construído na infância ou adolescência. Ray Liotta pode ter morrido ontem no sono, mas dá a sensação que foi arrancado à vida como um dos tantos personagens que nos levaram pelos aspetos mais complicados de uma vida a descoser os limites da lei. A sua figura fazia parte de uma certa cerimónia de graduação, daqueles ritos em que qualquer rapaz começa a saber das voltas para as quais nos leva a vida, e de como, muitas vezes, a linha que nos disseram que separa o certo do errado é uma espécie de privilégio. Era aquele tio com boa pinta, ar matreiro, meio sacana, capaz de impor respeito, deixar-nos nervosos com um olhar, um azul que tanto lhe dava charme como podia tornar-se glacial, e muitos dos seus papéis foram de duros e vilões. Mas depois havia também uma capacidade de nos puxar para ele, mostrar-se vulnerável, gerir bem o subtexto de situações tramadas, como acontece em Tudo Bons Rapazes, o filme de Martin Scorcese sobre a máfia que, em 1990, o lançou para o estrelato. Ray Liotta morreu ontem, aos 67 anos, durante o sono, segundo noticiou o Deadline Hollywood. Não se sabem ainda detalhes sobre as causas da morte, mas foi inesperada, uma vez que se encontrava a meio das filmagens de um novo filme, Dangerous Waters, de John Barr, na República Dominicana.
Na sua extensa carreira enquanto ator, não se livrou de interpretar uma série de papéis secundários enquanto criminoso ou velhaco, mas o certo é que não precisa de muitos minutos no ecrã para causar uma impressão forte na audiência, e foi graças à sua intensidade e à vertigem com que se lançava fosse nas cenas mais dramáticas como nas mais efusivas e bem humoradas, que muitos de nós, mais do que a admiração que se têm por uma estrela de cinema, tínhamos por ele essa estima e apreço que se tem por aquele tipo que nos deu algumas lições inestimáveis sobre a vida. Nascido em Newark, New Jersey, em 1954, Liotta foi adotado aos seis meses, após ser abandonado num orfanato. Mais tarde, numa entrevista à Esquire, referiu-se ao impacto que isto teve na sua carreira: “Sou adotado, o que quer dizer que não sei realmente o que sou. Aqueles que considero serem a minha mãe e o meu pai são italianos e escoceses. Eventualmente, acabei por conhecer a minha mãe biológica e ela confirmou que eu era uma mistura de várias coisas, mas não me disse ao certo o quê, e quando perguntei o que era o meu pai era, ela nem quis falar disso. Era como se nunca tivesse acontecido.” Depois de ter-se licenciado na Universidade de Miami, considerou por uns tempos entrar no negócio da venda de roupa, mas acabou por seguir para Los Angeles com ambição de singrar em Hollywood. Mas as coisas não foram fáceis a princípio. Passou quase uma década a bater às portas, a tentar conseguir que lhe dessem algum papel, e foi sobrevivendo com anúncios esporádicos, sendo que os seus primeiros dois créditos firmados como ator foram numa telenovela e num filme da semana. Antes que Jonathan Demme lhe carimbasse o passaporte para a fama, isto como o namorado delinquente de Melanie Griffith no filme Selvagem e Perigosa (1986), colecionou todo o tipo de recusas. Mas com aquele filme, Liotta experimentou pela primeira vez o gosto de se ver alvo dos elogios da crítica, e ainda que tenha desde logo ficado amarrado a um certo tipo de personagem, sabia que havia ali muito com que jogar. Ray Sinclair é o tipo que, acabado de cumprir uma pena de prisão, tatuado e com uma camisa preta justa, persegue obsessivamente a mulher que, entretanto, se engraçou com um outro tipo (Jeff Daniels). Já nesse papel se pressentia que havia nele um temperamento invulgarmente explosivo, ameaçador, e até a forma como Liotta conseguiu entrar no filme é demonstrativa da seu grau de comprometimento. Depois de ter ido às audições e de ser inicialmente recusado, segundo contaria mais tarde ao The New York Times, o ator decidiu contactar diretamente Griffith, que tinha em tempos sido casada com um antigo colega seu dos tempos da universidade, e depois a convencer de que ele sabia perfeitamente quem era Sinclair e que não havia ninguém melhor que ele para o papel, convenceu-a a recomendá-lo a Demme. Liotta viria a ser nomeado para o prémio de melhor ator secundário nos Globos de Ouro, e a década seguinte viu-o tornar-se um dos principais atores da sua geração, isto depois de Scorcese lhe ter confiado o papel principal de Henry Hill no já referido Tudo Bons Rapazes, filme que, além de ter sido nomeado para seis Óscares, viria a tornar-se uma influência decisiva pela crueza da representação quase épica de uma narrativa sobre a ascensão e queda de um grupo de mafiosos. Sucederam-se vários papéis proeminentes, embora, enquanto protagonista, não tenha conseguido segurar o onda, e, no início deste século, o seu astro tenha perdido algum brilho. Curiosamente, isso acabou por lhe permitir renascer na condição em que parecia estar mais à-vontade, como um excelente, enquanto personagem secundário capaz de emprestar aquela intensidade invulgar à medida que o seu próprio rosto perdia a beleza e o encanto de miúdo para ficar profundamente marcado, quase desfigurado.
Nos últimos anos, Liotta voltou a conquistar a crítica com as suas participações em filmes como Killing Them Softly, The Place Beyond the Pines, Marriage Story e uma vez mais como gangster na prequela de Sopranos, The Many Saints of Newark.