Esta talvez esteja a ser uma das maiores “nuvens negras” que tem sobrevoado a capital desde 2020. Em junho desse ano, já em plena pandemia, foi criada na Avenida Almirante Reis (maior eixo urbano de Lisboa) – durante o mandato de Fernando Medina -, uma pista ciclável pop-up, segregada. Mas não foi preciso muito até que os ânimos se exaltassem. Com a sua instalação, a supressão de lugares de estacionamento, os difíceis acessos a centros hospitalares, a congestionamentos nas cargas e descargas dos comerciantes, o aumento do tráfego e os vários acidentes, dividiram moradores, ciclistas, automobilistas, comerciantes e políticos. Se por um lado há aqueles que, ancorados nas preocupações ambientais, a defendem com os olhos postos num futuro mais sustentável onde os carros deixam de ser os protagonistas, por outro, muitas pessoas têm contestado a sua existência, desejando o seu desaparecimento.
Este foi mesmo um dos temas de debate na campanha para as eleições autárquicas de setembro do ano passado, que resultaram na vitória da coligação encabeçada pelo social-democrata Carlos Moedas, que prometia “acabar de vez com a ciclovia”. E, depois de muito tempo de especulações e de espera, na passada sexta-feira a autarquia divulgou o projeto completo que a transformará, dando-lhe uma “nova configuração na totalidade”: a ciclovia afinal não desaparece e passa para o sentido descendente em formato bidirecional, como já havia sido anunciado em março. O limite de velocidade deverá baixar para 30 km/h, haverá mais estacionamento ao pé do mercado de Arroios mas as ambulâncias e viaturas em marcha de urgência poderão pisar o caminho verde das bicicletas e trotinetes. E agora, ao que parece, moradores e ciclistas “unem-se”, considerando que, mais uma vez, houve falta de conversação e de planeamento, vislumbrando problemas concretos, nomeadamente no choque entre ciclistas e ambulâncias.
O que está em causa “Em Junho de 2020, em período pandémico, foi instalada na Avenida Almirante Reis uma pista ciclável pop-up, segregada. Com o retorno gradual do tráfego, aquela solução revelou-se inviável obrigando à implementação de uma alternativa em Junho de 2021”, lê-se na página da autarquia, que esclarece que “é intenção da CML promover alterações neste eixo viário, no sentido de o qualificar a longo e a curto prazo melhorando os níveis de circulação e a qualidade geral da vivência na Avenida”.
Segundo a CML, “estão ainda em desenvolvimento estudos de uma proposta de qualificação global, estruturante, promovendo um novo desenho, digno desta artéria tão importante na nossa cidade”. Contudo, neste momento, a autarquia avança com esta “proposta provisória” com o objetivo de “melhorar a fluidez do tráfego rodoviário e transporte público, bem como em todos os bairros adjacentes”. Para isso e tal como previsto – o projeto mantém a ciclovia bidirecional já existente na zona do Martim Moniz e a ligação na Alameda Dom Afonso Henriques -, existirão alterações nos sentidos de trânsito na zona do Mercado de Arroios para “retirar a atual viragem à esquerda existente na Avenida nessa zona”.
Assim, com a inversão dos sentidos de circulação automóvel junto ao mercado – em que o tráfego na rotunda passará a ser no sentido contrário dos ponteiros do relógio – o projeto da autarquia pretende ainda fazer com que “todo o arruamento tenha o mesmo perfil, mais urbano, mais próximo de um perfil de um arruamento de 4 º nível de cariz residencial”, o que acaba por implicar a eliminação do corredor ‘Bus’ da rua Carlos Mardel. Além disso, haverá algumas mexidas no separador central, nomeadamente na zona da Alameda e do Martim Moniz.
Segundo o município, as alterações envolvem “apenas raspagem de pintura e repintura, remoção e localização de balizadores e alteração da localização de ‘ilhas’ em lancil realizadas recentemente, aquando da instalação da pop-up, para localização dos semáforos”, por isso, lê-se no site, “terá custos reduzidos e obedece a critérios de racionalidade do investimento público”. Raspagens de resto testadas na semana passada. De acordo com a CML, as alterações, permitem “assegurar o canal de socorro, de acesso ao Hospital de S. José, à custa da utilização excecional e integral do canal ciclável” e “repor duas faixas de circulação no sentido da saída, Martim Moniz/Areeiro, promovendo maior escoamento do tráfego e diminuição dos níveis de poluição”. “No sentido descendente e na direita ascendente as faixas serão todas zonas 30, aumentando a segurança e a fluidez através da velocidade constante”, refere a câmara. A autarquia menciona também de uma “implementação de gestão semafórica inteligente, permitindo conduzir o tráfego, em bloco, em contínuo ao longo da Avenida criando o efeito de pelotão, promovendo o conceito de ‘onda verde’”.
Os “conflitos” Mas se a ciclovia se mantiver do lado de quem desce do Areeiro até ao Martim Moniz – via que as ambulâncias utilizam por exemplo para ter acesso ao Hospital de S. José – o que acontecerá? Imaginemos que ciclistas se encontram a descer e a subir a rua e uma ambulância em marcha de urgência necessita do espaço? “Nós continuamos a achar que a ciclovia ali não faz sentido! Primeiro devido à largura (às questões físicas do local) e depois, a todas as instituições que ali estão à volta”, começa por explicar ao i Luís Castro, fundador dos Vizinhos de Arroios – Associação de Moradores. Uma ciclovia deve “promover a mobilidade suave em segurança”, que é o que “não acontecia nem nos projetos do Medina, nem está a acontecer agora”, critica. “Neste novo projeto esta questão pode ter sido eventualmente mitigada, mas continua a não promover isso”, afirma Luís Castro, sublinhando que uma ciclovia, “como o próprio nome indica, e as melhores práticas internacionais definem, tem de ser segregada”. “Portanto, numa ciclovia não podem andar ambulâncias e carros da polícia… Porquê? Porque as bicicletas andam a uma velocidade pequena e estas viaturas andam a altas velocidades. Faz parte da sua condição de prestar socorro. Estas duas coisas são incompatíveis! E por isso, estão a ser geradoras de potenciais conflitos em termos de segurança”, adiantou. Para o fundador da associação de moradores, é uma “parvoíce” pensar que um carro ande a 30 quilómetros por hora. “O carro muitas das vezes vai-se abaixo ou tem de se meter em segunda, portanto está a consumir mais combustível e se o está a fazer, está a poluir mais”, alertou.
De acordo com Luís Castro, o que o Presidente Carlos Moedas fez “foi pegar na medida do ex-vereador da mobilidade e segurança, Miguel Gaspar, que deu um tiro no pé a si mesmo ao filmar os bombeiros e ao dizer que aquilo no sentido descendente é uma maravilha, porque as ambulâncias chegavam ao hospital em três tempos”. “Foi a própria Câmara, nessa altura, que apresentou as forças de segurança, bombeiros, polícia, a dizer que a ciclovia no sentido descendente aumentava o socorro. Tendo em consideração que 80% dos casos de prestação de socorro na Almirante Reis são no sentido descendente (dos hospitais) e apenas 20% no sentido ascendente”.
Sendo assim, admite, “não se percebe o que é que existe de contra indicador nesta medida”: “A menos que isso não seja verdade! Que não o é! O que o ex-vereador disse é uma grande mentira. Numa via onde se anda a 30 quilómetros por hora, andarem carros a alta velocidade, não faz sentido nenhum”, reforçou, revelando que, “nem se pode confiar nos números que nos são apresentados e que concluem que a utilização de bicicletas aumentou”. “No passado nós chegámos a ir ao Instituto Superior Técnico que tinha vários investigadores ligados à Câmara Municipal (isto é que é curioso). O Instituto, juntamente com um departamento da Mobilidade, tinham pessoas a fazer os chamados estudos de contagens de bicicletas, mas era tudo falsificado… É só ir para as avenidas da cidade de Lisboa e ver quantos lá passam”, lamentou.
Já Mário Meireles, vice-Presidente da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB), contou ao i que a federação teve uma primeira reunião com a Câmara Municipal de Lisboa, “em que havia algumas situações que ainda careciam de estudo”. “A federação ficou disponível para ajudar em qualquer outro novo projeto que existisse. Aguardámos desenvolvimentos e esperávamos que tivesse havido mais envolvimento. Aquilo que foi dito na altura era que efetivamente agora iam começar a haver mais alguma auscultação e depois se apresentaria uma versão nova daquilo que seria a ideia para a Almirante Reis”, revelou. Contudo, o grupo foi surpreendido, na semana passada, quando surgiu “o primeiro teste para apagá-la”. “Fizemos imediatamente um pedido ao Presidente para perceber o que é que se estava a passar… Essa reunião não foi marcada, mas contamos fazê-lo na próxima semana. Entretanto saiu o novo projeto e nós manifestámos as mesmas reservas que o INEM e as ambulâncias”, acrescentou, aludindo a reservas manifestadas do lado por estas entidades.
Para o dirigente, tecnicamente parece haver coisas que “merecem reavaliação” e que “poderão ser prejudiciais”. Segundo Mário Meireles, seria mais “interessante” – até a nível de gestão de fundos -, “ter uma solução mais definitiva que obrigaria a uma intervenção de fundo mais a longo prazo do que mais uma pop-up, que vai fazer com que se gaste outra vez dinheiro”. “Este é só um projeto para tentar solucionar alguma coisa? Parece-nos que é pior do que aquilo que está neste momento”, rematou.