A história parece saída de um romance: um livro perdido há mais de 300 anos, descoberto por acaso numa tarde de verão por uma historiadora que, estando em Roma, a coisa mais prazerosa que lhe ocorreu fazer nos intervalos de uma conferência de Literatura Bíblica foi pedir para consultar manuscritos que há anos só conhecia das fotocópias que usava para investigar aquela que é considerada a obra-prima de Padre António Vieira – Clavis Prophetarum – livro em três partes em que, no final do século XVII, o padre jesuíta interpretou as profecias do Antigo Testamento e o seu significado para a Igreja e fiéis de então e para o futuro.
A investigadora é Ana Travassos Valdez, que ontem não escondeu a emoção ao relatar os acontecimentos de julho de 2019 diante do anfiteatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que se ligou à Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma para revelar a descoberta, o restauro minucioso que foi feito desde então e o que esperam que venha acontecer: além de uma edição crítica bilingue (latim/inglês), acreditam que a obra resgatada de Vieira pode tornar-se “protótipo” de investigação de manuscritos antigos com as armas hoje ao dispor: nanotecnologia e digital.
Mas voltemos a julho de 2019 e ao que se sabia então. Referenciada em várias cartas de António Vieira, são conhecidas múltiplas cópias da obra, que ocupou o padre jesuíta português nos últimos 25 anos de vida – e o angustiou já no final, quando não o conseguia acabar, primeiro ocupado com o trabalho editorial dos seus famosos Sermões e, depois, com problemas de saúde, entre os quais a cegueira.
Pediu mesmo a dois padres que o terminassem por si, sem grande sucesso apesar do apoio e de relatar que, aqueles a quem o ia dando a ler, elogiavam o seu valor, como se fosse um palácio.
No ano 2000, Arnaldo Espírito Santo, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – que é o segundo personagem da história desta descoberta – publicou uma edição crítica a partir de uma cópia guardada na Torre do Tombo e ontem recordou a cronologia, que ajuda a enquadrar a conquista mantida em segredo pelos últimos dois anos.
Logo a seguir ao funeral de António Vieira, em julho de 1697, os papéis do padre jesuíta foram guardados num baú fechado com duas chaves em Salvador da Baía. No ano seguinte, foi feita uma cópia do original, enviado para Roma para a Companhia de Jesus, cópia esta que é a mais antiga conhecida – guardada como manuscrito 706 na Biblioteca Casanatense, em Roma. É dessa cópia que existe a tal cópia na Torre do Tombo, em Lisboa.
Já o baú com os papéis originais do padre António Vieira foi enviado em 1714 para Lisboa, para o providencial da Companhia de Jesus em Portugal. O manuscrito que Vieira nunca chegou a publicar – mas que tinha como a sua obra-prima e dizia que, comparados com ele, os seus Sermões eram “choupanas” – foi entregue ao cardeal D. Nuno da Cunha, Inquisidor-mor dos Reinos de Portugal e Algarves, que pediu ao padre António Casnedi que fizesse um parecer sobre a ortodoxia da doutrina do que Vieira tinha escrito. Passou no crivo, embora viesse a ser mutilado nos anos seguintes, mas a forma do livro pareceu-lhe imperfeita. Entretanto Casnedi caiu em desgraça na corte, foi-se embora de Portugal e morreu em Badajoz. Nunca mais se soube do original, que terá ido para Roma com a expulsão dos jesuítas de Portugal em 1759, ficando perdido quando a ordem foi suprimida em 1860. Restaram as cópias.
E vamos então à história, que está cheia de acasos. Primeiro a conferência de Literatura Bíblica a que foi Ana Travassos Valdez era para ser na Índia e foi mudada à última hora para Roma, sendo acolhida pela Universidade Gregoriana. Na abertura, percebeu que o reitor era português e no dia 2 de julho de 2019 decidiu apresentar-se. “Foi nesses breves momentos que o reitor, o padre Nuno Gonçalves, me fez uma pergunta mágica: alguma coisa que possa fazer por si enquanto está em Roma? E eu, inocentemente, perguntei se seria possível ver os manuscritos da Clavis Prophetarum da Gregoriana, o manuscrito 354 e o manuscrito 359, porque há muitos anos que trabalhava neles a partir de fotocópias. A resposta foi imediata: ‘claro que sim, vamos vê-los’. Pouco depois, conhecia o diretor do arquivo, o padre Martín Morales, que ontem deixou ao anfiteatro uma metáfora tocante: os arquivos, como o mar, de vez em quando trazem à costa coisas que estavam esquecidas na sua profundidade. “Devemos apropriarmo-nos deste texto de António Vieira se não queremos que o mar o engula novamente”, pediu.
“Um volume com mau aspeto” Em julho de 2019, nos intervalos da conferência que tinha ajudado a organizar, Ana Travassos Valdez esperou na sala de leitura da biblioteca da Universidade Gregoriana que chegasse o carrinho com os dois manuscritos que tinha pedido para consultar. Mas apareceram quatro. “Comecei naturalmente a folhear o 354 e o 359. Depois olhei para o 1165/2 mas pu-lo rapidamente de parte porque achei que era uma cópia demasiado moderna. Só depois do almoço comecei a olhar para o volume com mau aspeto que tinha deixado de lado durante a manhã. Folhei-o, virei-o, olhei-o e fiquei muito inquieta. O manuscrito 1165/1 parecia uma coisa que não podia ser.”
E era, mas levariam mais de um ano a ter a certeza. Naquela altura, o primeiro passo da historiadora foi abrir a sua tabela de excel com a comparação dos manuscritos mais importantes da Clavis e criar uma coluna nova para o que tinha à frente. “O que mais me chamou a atenção foram os papelinhos inseridos no primeiro fólio do volume em que se dizia que era a versão mais autêntica, solicitada pelo D. Nuno da Cunha, o inquisidor mor português. Intrigante. Quanto mais olhava para estas notas mais me parecia estranho que o capitulo 3 fosse listado por duas vezes. Recordei as palavras do relatório do censor (Casnedi), que dizia ‘um volume apenas imperfeito na forma, porque só o primeiro livro estava paginado.’”
Lembrou-se de que como nas suas cartas, Vieira dizia que ia escrevendo a Clavis em cadernos. E era cadernos diferentes, com papéis diferentes, que tinha à frente. “Seria? Não, impossível. Estava a sonhar. Todos sabíamos que o original tinha desaparecido.”
Quando expôs a sua inquietação ao padre Martín Morales, ele incentivou-a e perguntou-lhe porque achava que seria impossível: “Muito simples, todos os grandes especialistas em Vieira tinham estado na Gregoriana.” Por algum motivo, a obra não tinha sido consultada – o arquivo está aberto a investigadores externos desde 1990 e, reconstruída agora a história, o original terá regressado ao espólio da Companhia de Jesus em 1949, integrado então na biblioteca. No dia seguinte, a historiadora reviu a obra e decidiu que tinha de chamar a Roma Arnaldo Espírito Santo, especialista no livro.
“O Arnaldo ainda olhou de lado”
Voltaram em janeiro de 2020. “O Arnaldo ainda olhou de lado, mas depois percebeu o que estava a dizer. Ainda falámos muito alto na sala de leitura por causa da excitação. Depois do almoço, o Arnaldo diz-me: ‘Há uma coisa que pode comprovar. O Casnedi diz que na página x se fala do pecado da imperfeição moral. Vamos ler a sententia (sentença) e verificamos isso. Encontrámos a referência, abrimos o fólio e lá estava a nota na marginalia. As dúvidas começaram a dissipar-se e a excitação a aumentar perante a enormidade do que tínhamos na frente.”
Voltaram a Roma em fevereiro de 2020, para os primeiros testes que confirmaram um manuscrito do último quartel do século XVII, com papéis diferentes e escrito por mãos diferentes – Vieira teve três secretários ao longo da vida, ditando no final. “Ficámos loucos de curiosidade, com perguntas a que queríamos responder mas foi nessa altura que a Europa confinou. Durante dois anos ficámos impedidos de ver e trabalhar diretamente com o manuscrito.”
Voltaram a vê-lo há duas semanas, mas nestes dois anos muito foi feito: a Universidade Gregoriana restaurou o manuscrito, com finas camadas de papel por cima do original para consolidar e estabilizar as páginas, retirando as partes que estão coladas por cima dobradas, ao ponto do livro com mais de 600 páginas já não caber na encadernação original.
Mais: foi digitalizado e vai integrar uma plataforma da universidade que permite navegar pelo texto e criar hiperligações, pesquisar por referências e lugares. Está a ser preparada também uma edição em latim e em inglês (pela Peeters Publishers Leuven). E o trabalho começa agora: pretendem que o livro se torne acessível a investigadores e ao público, o que exigirá uma edição crítica. “Quando traduzimos, estamos a usar vocabulário do século XXI, é preciso explicar o que determinado conceito queria dizer em latim. Um bom exemplo é o conceito simples mas ao mesmo tempo complexo de futuro: o que Vieira entendia por futuro é diferente da ideia que temos hoje”.
Acreditam que a recuperação do manuscrito pode abrir portas para a investigação nesta área, com o estudo de obras antigas em 3D. “Estamos no início de um longo caminho”, rematou a investigadora. Para já, é um feito: não é todos os dias que há descobertas nas Humanidades, disse na abertura Miguel Tamen. “A ocasião que nos junta aqui esta tarde é uma ocasião rara numa universidade como a nossa. Com a importante exceção dos nossos arqueólogos, normalmente elaboram-se explicações de coisas que já existem antes. De factos históricos, de poemas, de romances. Não somos famosos por registar patentes, descobrir curas para doenças ou localizar asteroides. Acontece que dois dos nossos investigadores encontraram uma coisa, ou em linguagem mais dignificada, fizeram uma descoberta”, disse. Eureka, costumam dizer os cientistas. Ali, o nome dado à cerimónia, que juntou os especialistas portugueses e os italianos, foi “Oggi Trovato”. O livro que estava “perduto” está agora encontrado.