Esta história começou da mesma forma que se mantém viva a tradição: na mesa de um restaurante de Lisboa, uma convidada inesperada sente-se à mesa para dois dedos de conversa nestes dias de santos populares e agradece aos convivas com um gesto para lhes dar proteção: um pãozinho de Santo António, trazido da igreja erguida no local onde nasceu o santo a 15 de agosto de 1195, pensa-se, no coração de Lisboa.
O pão duro embrulhado em papel corre as casas e os altares de Santo António dos lisboetas, mas não só. Vai de Lisboa para o mundo inteiro. De boca em boca, ou mais de coração em coração, conta-se o que se sabe e os que um dia receberam um pãozinho de Santo António, de amigos ou familiares mais velhos, passam a ir buscá-lo.
Alguns passam a fazê-lo todos os anos, levam um saco com vários para distribuir. Quem não os come, guarda-os por anos, até décadas. Pedem algo de especial ao santo padroeiro de Lisboa, colocam-no na mesa de cabeceira, às vezes com uma moeda por baixo. Alguns voltam para agradecer um milagre ou uma promessa cumprida, às vezes também de longe, numa devoção antiga que tem na Igreja de Santo António pontos obrigatórios de passagem: a cripta, que assinala o lugar de nascimento de Santo António, a relíquia e a tela com uma pintura de António, que sobreviveu a um incêndio.
É domingo e vemos a história a continuar a desenrolar-se. Carlos Ferreira, guardião dos pãezinhos na banca onde são vendidos à porta da igreja, divide-se entre as perguntas da jornalista, os turistas que pedem para saber mais ou as caras conhecidas que chegam para vir buscar os seus pãezinhos deste ano.
Dizem que o pão nunca apodrece e, segundo a tradição, deve ser comido passado um ano, no dia 13 de junho. «Alguns comem-no sem nada, outros molham no leite, chá, sopa ou vinho do Porto, também é bom», sorri Carlos, de 49 anos, noutra vida com negócios no Algarve mas que acabou a trabalhar na igreja, quando percebeu que precisavam de uma mãozinha. É que a tradição dos pãezinhos de Santo António, vendidos a 40 cêntimos cada, mantém viva uma mais antiga: o Pão de Santo António. Duas vezes por semana, com as receitas e esmolas, é distribuída comida a quem precisa no bairro, neste momento a 140 famílias.
«A tradição dos pãezinhos de Santo António neste formato terá começado com a Obra da Imaculada Conceição e Santo António. Foi uma obra de apoio a crianças que começou nos anos 50, pelas mãos do saudoso e um homem muito corajoso, o padre Abel Correia Pinto. Era reitor na altura aqui da igreja e fundou o orfanato em Caneças, que na década de 50 chegou a receber para cima de 400 crianças», lembra Carlos.
Para ajudar a financiar a obra, começaram a vender o pão ázimo, sem fermento, feito ainda hoje na padaria de João e Fernanda, no centro de Caneças. «A tradição é as pessoas comprarem um pãozinho, que já está benzido, e guardarem-no de um ano para o outro para que durante o ano nunca falte pão na mesa. No dia 13 de junho do ano que vem, come o pão deste ano e reza-se uma oração. Há outras tradições de pão de Santo António pelo mundo, pensa-se que a primeira em França, fruto de uma promessa. Hoje há paróquias que o fazem no Brasil, em Espanha ou Itália e pensa-se que estará ligada ao milagre do pão de Santo António».
Reza a lenda que um dia distribuiu aos pobres todo o pão do convento. Quando chegou a hora da refeição, o padeiro pensou que tivessem sido roubados. António, sem se descoser, pediu que fosse ver melhor e os cestos estavam cheios.
Aqui, acaba por ser o pão vendido a permitir a que a partilha se multiplique, para lá da devoção. Com o encerramento da obra em Caneças, a Igreja de Santo António quis manter viva a tradição e há dois anos que embrulham ali os pães, com o carimbo original. O pão continua a vir de Caneças. Anualmente, chegam a ser vendidos na Igreja 100 mil pãezinhos, conta Carlos, 40 mil por estes dias, mas há todo o ano. «Há muita gente que vem buscar para levar para o estrangeiro. Temos por exemplo o senhor Casimiro, que leva para a comunidade de Paris, normalmente 300. Vêm buscar para o Canadá, para os EUA, para Goa. O pão de Santo António está um pouco por toda a parte do mundo. E depois alguns voltam, outros vêm pela primeira vez. A tradição é isto. Todo o dinheiro reverte para o apoio alimentar».
A quem já sabe ao que vai juntam-se os turistas que invadem Lisboa, uns trazidos pelos guias, outros pelo próprio pé. «Nunca apodrece», assegura Georgete, de Carcavelos, que leva pãezinhos para amigos e colegas da escola onde trabalha. «Havia uma senhora que me levava, dava-me e depois alimentava os passarinhos. Agora já está velhota e passei a vir eu. Levo cinco euros em pãezinhos, dá para muita gente». Fernando, 45 anos, lisboeta de gema, segue a tradição da avó e das amigas, que já partiram. «Há pãozinho de Santo António lá em casa desde que me lembro. Traz sorte. Agora vou comer o do ano passado».
Florian, de Berlim, aproxima-se da mesa para saber mais. «Então vão ser sete», pede. «Muito bem, o número de Deus», responde Carlos. «É o número dos meus amigos que ficaram a dormir», atalha. Foi longa a noite? «Foram para o Lux, mas eu fui mais cedo para casa porque queria vir à missa. Batizei-me há duas semanas!», responde o alemão de 30 anos, vermelho com o sol de Lisboa. Uma decisão tardia? «Sim, cresci em Berlim oriental, a religião não entrava lá em casa. Aconteceu».
Anabela, guia-intérprete oficial, traz um grupo de turistas italianos e é habitual passar pela Igreja de Santo António, conta. «Geralmente acham que o Santo António era de Pádua mas ficam muito contentes por saber a história e por vir aqui». É de Alfama, por isso a tradição não lhe é estranha. «Para quem nasceu e viveu aqui, não podia faltar o pãozinho, mas há outras tradições. Nos altares de Santo António, roubava-se o menino Jesus quando se queria um marido e dizíamos que só quando ele nos desse é que devolvíamos».
Lá em casa, o pãozinho comia-se na manhã do dia de Santo António, com a caneca de leite, enquanto se via a procissão passar debaixo da janela, decorada com uma colcha. «Mangiare l’anno prossimo», vai respondendo aos italianos, que se preparam para celebrar a missa das 12h30. «Temos muitos peregrinos», complementa Carlos.
Mais pedidos chegam, mais pãezinhos saem e o cesto que estava cheio vai-se esvaziando. Consuelo vem à missa com a mãe de 93 anos. Espanhola, vive em Portugal há 20 anos e Santo António há de ter tido qualquer coisa a ver com isso. «Fui um dia a Pádua, foi quando soube que Santo António era de Lisboa e não era de lá. Não sei se foi por ele que acabei por vir trabalhar para Lisboa, mas creio que houve alguma intervenção divina», diz, enquanto pede 20 pãezinhos, para a mãe dar às amigas. A devoção é antiga e em Madrid também já tinham as tradições de Santo António casamenteiro. «Lá tínhamos os alfinetes. É assim: as solteiras metem a mão numa tina de alfinetes e os que picarem são os namorados que vais ter, supostamente», ri.
E milagres? Esses ficam quase sempre guardados, mas Carlos testemunha que algumas histórias o têm tocado. Há uns anos, vendeu um pãozinho de Santo António a uma jovem japonesa, que estava a estudar em Lisboa. Explicou-lhe o que havia de fazer: no ano seguinte, comer o pão e fazer um pedido ao Santo António. Algum tempo depois, ficou surpreendido quando a viu voltar a entrar na Igreja. Tinha vindo de propósito do Japão para agradecer. «Não era católica. Lembro-me que da primeira vez tinha um fio de Santo António ao pescoço, que lhe tinha sido dado por uma colega. Entrou muito comovida e disse que tinha voltado porque aquilo que tinha pedido ao Santo António tinha acontecido. Não sei o que foi, mas para vir do Japão deve ter sido alguma coisa muito importante».
Um outro relato ficou-lhe marcado. Uma americana, bióloga, que teve um acidente automóvel no Utah, e veio agradecer ter sido salva. «Chegou também muito comovida. Contou que trabalhava num laboratório fora da cidade, num sítio ermo. Adormeceu ao volante às 4h da manhã e o carro caiu de uma ribanceira. Tinha ferros no corpo todo. Pediu ao Santo António, que era o santo de devoção da mãe, que a salvasse. Diz que o viu no alto da colina. Quando acordou no hospital, percebeu que alguém a tinha ido socorrer. Veio aqui agradecer ao Santo António por ter sobrevivido. É a fé, não se explica».