“Os hospitais que mais sofrem são os mais dependentes de tarefeiros”

Bastonário dos Médicos diz que Ordem está disponível para colaborar na preparação de plano de contingência e defende, no imediato, mudança de regra de 2011 que impede médicos de fazerem prestações de serviço nos seus hospitais.

Com um plano de contingência anunciado para assegurar o funcionamento dos serviços de obstetrícia no verão, a Ordem dos Médicos mostra-se disponível para colaborar com o Governo e defende que uma das soluções “imediatas” para um “problema estrutural” de fixação de recursos médicos no Serviço Nacional de Saúde passa por alterar um despacho de 2011, que impede os hospitais de contratarem médicos “da casa” para prestar serviço nas suas instituições fora do horário de trabalho, acabando alguns por fazê-lo noutros hospitais e através de empresas, que não têm o mesmo vínculo aos serviços nem estão obrigadas a preencher escalas. 

Miguel Guimarães – que ontem divulgou um recente retrato da especialidade publicado na revista Acta Médica Portuguesa, que mostra que só 892 de 1824 obstetradas inscritos em 2021 na Ordem dos Médicos trabalhavam no Serviço Nacional de Saúde (48%) – sublinha ao i que a retenção de médicos nos hospitais públicos implica mudanças de fundo na atratividade das carreiras no SNS e modernização dos serviços públicos, mas considera que a “excessiva dependência” de empresas de prestação de serviços, a que os hospitais recorrem para suprir falta de pessoal, acaba por contribuir para o aperto que se tem vivido nos hospitais nos últimos dias.

“Os médicos de um serviço não podem ir todos de férias ao mesmo tempo, há regras como há para as restantes equipas. Porque é que isto acontece nestes períodos? Quem falha não são os hospitais, são as empresas prestadoras de serviços.

A maior parte não tem quadros médicos, tem médicos disponíveis que podem ser chamados e dizer que sim ou que não, mas que não têm um compromisso. Nestas alturas de feriados, têm mais dificuldades, porque as pessoas estão menos disponíveis. E os hospitais que mais sofrem são os que estão mais dependentes de empresas prestadoras de serviços”, diz Miguel Guimarães, defendendo por isso que o Governo devia alterar o despacho n.º 10428/2011, que no ponto 4 estabelece que “os médicos vinculados às instituições contratantes não podem ser por elas contratados em regime de prestação de serviço.”

“É algo que não faz sentido. Foi um despacho publicado em 2011, quando estávamos sob intervenção da troika, que não permite que os médicos de um hospital, depois de já terem feito as 150 horas extra a que estão obrigados por lei, possam fazer tarefas no seu próprio hospital. Isto neste momento limita as administrações e levanta vários problemas, porque os hospitais até lhes poderiam pagar aos seus médicos um valor melhor do que aquele que recebem por horas extra, reduzido a 25%, mas menor do que acabam por ter de pagar a empresas de prestação de serviços para ter médicos de fora. Chegam a ter de pagar 40 e 50 euros por hora”, diz o bastonário, sublinhando que os hospitais gastam mais de 100 milhões de euros por ano em tarefeiros, com um valor hora superior aos médicos dos hospitais, algo que a classe reclama há vários anos. 

“Isto gera uma enorme instabilidade nas equipas e desmotivação, além de que depois os hospitais ficam na mão das empresas. A solução tem de ser contratar pessoas para os quadros hospitalares e haver um mínimo de prestação de serviços, mas no imediato se a ministra mudar o ponto 4 deste despacho, uma parte do problema atual resolve-se. Não é a solução de fundo, que passa por uma intervenção estrutural no SNS”, continua Miguel Guimarães. 

“Se continuarmos a empurrar os problemas com a barriga, porque achamos que o SNS não pode pagar mais salários, não tem de ter inovação tecnológica, é evidente que não vamos lá. Se o Ministério da Saúde e o Ministério das Finanças continuarem a congelar milimetricamente os hospitais e os Agrupamentos de Centros de Saúde, sem haver autonomia e flexibilidade na gestão para cada instituição poder gerir a sua ação dentro de um orçamento real e não fictício, estes problemas vão continuar a existir. Temos uma burocracia brutal e a contratação de pessoas na administração pública é muito difícil”.

Concurso para novos especialistas Um exemplo apontado pelos médicos prende-se com o concurso que o Governo anunciou que vai abrir esta semana para a contratação de médicos recém-especialistas, clínicos que terminam a sua formação pós-graduada em dois períodos em cada ano, com provas em fevereiro/março e em setembro/ outubro, seguindo-se dois concursos anuais, o primeiro geralmente por esta altura.

“Porque é que se demora três meses a abrir estes concursos?”, diz Miguel Guimarães, lembrando a lei, aprovada em 2018 no Parlamento, que estabeleceu a obrigatoriedade de procedimento concursal para recrutamento dos médicos recém-especialistas que concluíram com aproveitamento a formação específica, no prazo de 30 dias após a homologação e afixação da lista de classificação final do internato médico. Este ano, as listas foram homologadas pelo Conselho Nacional do Internato Médico a 10 de maio de 2022, com direito a recurso até 23 de maio.

“A perceção que nós temos é que se os concursos abrissem rapidamente, mais médicos ficariam no SNS. Se deixo concursos a planar, entretanto alguns médicos vão tendo convites para ir para o privado ou para o estrangeiro e acabam por tomar essa opção. Podemos dizer que é por este motivo que os serviços estão assim? Não, mas é mais um fator. Com o plano de contingência, podemos resolver alguns problemas, mas é preciso rever todas estas questões”.

Questionado pelo i, o Governo não adiantou ontem qual o calendário para conclusão do plano de contingência, que está a ser trabalhado em Lisboa com a organização dos hospitais em rede, como aconteceu com a medicina intensiva na resposta à pandemia. Há o alerta de que poderão verificar-se problemas noutras especialidades, como anestesiologia. 

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