Futebol ao ritmo das seivas. Futebol da Festa da Flor de Quechua e Otavalo. Os otavalos são um dos povos indígenas que habitam o Equador há milhares de anos e que conservam a sua identidade de forma férrea, tendo suportado primeiro a invasão dos incas que não respeitaram grandemente o velhíssimo lema da Terra, de Mama Ocllo, filha do Sol e mulher de Manco Capac, o primeiro homem a viver em Cusco – «Ama llulla, ama quella, ama sua» (Não mentir, não vagar, não roubar) – e depois as hordas de Pizarro e dos seus cavaleiros de ferro que vinham em busca do El Dorado.
Mundialito, chamam-lhe. O mundo pode ser expresso de muitas formas e ninguém tem o direito de dizer que é dono dele.
A taça entregue ao vencedor é uma cópia da Taça do Mundo, mas mais grotesca, feita de bronze dourado e não de ouro, o que não deixa de ser de uma profunda ironia, tal a febre do ouro que fez os exércitos espanhóis dizimarem centenas e centenas de aldeias em países que agora são o Equador, o Peru, a Colômbia ou a Bolívia.
Os otavalos falam kichwa, uma variante o quíchua. Só no Equador, que tem cerca de 18 milhões de habitantes, são 65 mil. Orgulhosamente 65 mil! A partir da década de 80 começaram a beneficiar do crescimento do turismo. Gente vinha de todo o planeta para observar a sua forma simples de vida, assente na agricultura e produzindo maioritariamente milho, feijão e batata. Muitos pousaram as enxadas e dedicaram-se ao artesanato. cada um vende o que pode. E a quem o quer.
Um grupo mais agarrado às raízes vive nas margens do lago Yahuarcocha, onde entre 1500 e 1505, os incas comandados por Huayna Capac massacraram centenas e centenas de otavalos no lugar de Caranque. Yahuarcocha: em quíchua quer dizer Lago de Sangue.
Sem distinções
A partir de 1995, a Fiesta del Florecimiento, ou Pawkar Raymi, começou a ter futebol. A pouco mais de um quilómetro de Otavalo, em Peguche, na província de Ibambura, o campo deixou de ser apenas utilizado para o cultivo e a erva cresceu para que os indígenas organizassem o seu Mundialito. Cada comunidade avança com a sua equipa e, num movimento de aceitação sem distinções, tem direito a utilizar três jogadores que não lhe pertençam, sejam eles estrangeiros ou não, mestiços ou afrodescendentes, pouco importa. O que importa, além da bola, claro está!, é a trança: sim, a trança bem desenhada na nuca que revela o tal orgulho otavalo. A trança como símbolo de uma independência que não existe mas exige respeito pelas tradições antigas.
As equipas chegam ao campo de futebol em carrinhas ou camionetas que lhes servem de vestiário. Estacionam em redor do recinto enquanto os que vão jogar se preparam e os que não vão jogar se agarram aos jarros de chicha de jora, uma bebida fermentada à base de milho maltado (jora), aparentada com a cerveja, se quiserem (bastante pior, para o meu paladar), que foi o a poção sagrada do Império Inca de Tupác Yupanqui. «Jahuama!» (arriba!), gritam para aqueles que se batem com denodo pela honra de serem os campeões. Defrontam-se o Barcelona e o Ayllus, com estes a recolherem a maior simpatia por parte das cerca de nove mil pessoas presentes, provavelmente devido ao nome estrangeirado do Barcelona e ao significado de Ayllus – família, amigos, em kichwa. Não é fácil a nenhuma equipa chegar até aqui todos os anos – cerca de 7 mil dólares são investidos na preparação. O melhor marcador do torneio recebe uma Chinela de Ouro. Embora todos joguem de chuteiras das melhores marcas estrangeiras.