A incrível história do Dr. Rufo

Exerce advocacia há quase três décadas, mas para obter a licenciatura teve de forjar documentos da Faculdade de Direito de Coimbra.  

É impossível que um homem viva nestas circunstâncias sem sentir medo. Mas Luís que, durante quase trinta anos, construiu a vida fazendo-se passar por advogado e fidalgo com documentos forjados, nunca pensou ser apanhado. Enriqueceu, tem duas belas mansões, um Porche e um Mercedes e até pode ter vocação. Mas não é uma coisa nem outra. Aqui fica a incrível história do Dr. Rufo

Luís Manuel Rodrigues Gonçalves Rufo pode até tornar-se num fantasma, já que o seu passado é uma vigarice e o futuro uma incógnita. O homem, nascido em 1955 em Viana do Castelo, exerce advocacia há quase três décadas, mas para obter a licenciatura teve de forjar documentos da Faculdade de Direito de Coimbra. O seu nome tem, porém, grande reputação em Braga, onde já foi advogado da diocese e do próprio arcebispo D. Jorge Ortiga, retirado recentemente, e ex-provedor da Irmandade de Santa Cruz, uma IPSS composta por um lar e uma creche sob a alçada do mesmo episcopado.

Como clientes, Rufo tem também vários empresários – entre os quais Artur Martins Azevedo, fundador em 1976 da Fricon, uma sociedade especializada na produção e comercialização de equipamentos de congelação e refrigeração de Vila do Conde, com uma fortuna avaliada em milhões. Com subtilezas, Rufo conseguiu que o empresário depositasse mais confiança nele do que na prole, tendo-o tornando testamenteiro da farta herança e deixando os filhos na sua dependência. 

Com a deliberação de dar cor às suas origens, Luís Rufo apresenta-se como fidalgo, complementando a farsa com o uso de um brasão de armas abusivo. Nasceu, no entanto, em berço modesto: o seu progenitor era um simples trabalhador da antiga Sacor e, a mãe, como tantas outras mulheres neste arcaico país, passava o santo dia à volta dos tachos e panelas e a mudar os cueiros aos seis filhos que nasceram de afogadilho.

Rufo cresceu aguardando a hora de quebrar o enguiço dos pobres. Começou por fazer um curso de hotelaria e teve o seu primeiro emprego na pousada da Caniçada, no Gerês, onde começou a angariar conhecimentos.

Em 1985, com trinta anos feitos, Rufo, sobre o qual não se podia dizer que não fosse homem de trabalho, já mudara de ramo profissional. Entrara na EDP como um mero funcionário, mas num ápice chegara a chefe de departamento. À espera de encontrar uma vaga na coutada privilegiada dos profissionais de sucesso, é aqui que, com o aval da empresa, pula para a universidade.

E foi nesse ano que, sem o Ensino Secundário completo, através dos então designados exames “ad hoc” que davam acesso aos adultos ao ensino superior, Rufo se candidatou à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aqui, segundo os registos existentes, apenas completou a disciplina de História do Direito Português, que fez o milagre de se multiplicar.

O esquema montado não carecia de grande engenho, mas necessitava de muita lata e confiança nos acasos do futuro. Rufo, utilizando o certificado da Faculdade de Direito da disciplina de História do Direito Português, rasurava o nome da cadeira colocando outra por cima. Um dos exemplos foi Direito Administrativo. O objetivo era obter equivalência a essa cadeira na Universidade Portucalense onde depois se inscrevera.

Rufo vivia em Braga e estudava no Porto, mas foi em Ponte da Barca, no cartório de Licínio Figueiredo, que completou a falsificação. Ou tinha lá um cúmplice ou tentou a sua sorte por terras onde era um estranho.

Tinha de haver uma explicação para a falsificação, uma vez que o Nascer do Sol tinha o documento passado naquele notário e Artur Pinto aventa outra hipótese: “Não quer dizer que essas coisas não possam acontecer. Mas, geralmente, são os funcionários que tratam deste tipo de casos. O notário só assina”.

Rufo, aproveitou as prerrogativas de causídico e foi ganhando estatuto amparado pela diocese de Braga, tem duas empresas com um volume de negócios razoável. Mas é gerente de uma delas que se dedica à intermediação imobiliária o que é incompatível com a profissão.

Para quem veio do nada, e com um diploma forjado, Rufo compôs bem a sua vida: tem duas belas mansões e, para não cair na rotina, faz-se passear uns dias num Porshe, outros num Mercedes. E arrecadou uma enorme lista de títulos: ex-provedor da Irmandade de Santa Cruz, mesário da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro, presidente do Conselho Fiscal da Irmandade dos Congregados, membro fundador do Festival de Órgão de Braga e até dirige a Confraria do Vinho Verde.

Confrontado com os factos, Rufo parece ter ouvido uma voz do outro mundo. Empalideceu, certamente. A cara e o corpo contraíram-se, não podia ser de outra maneira. As palavras saem como se as cordas vocais tivessem paralisado os graves e os agudos: “Mas, sôtora, eu tirei o curso! No primeiro ano da licenciatura, andei até na Faculdade de Coimbra e na Livre ao mesmo tempo. Depois estive na Portucalense. Tenho toda a documentação. Fiz até o estágio com o Dr. Artur Marques. Posso mandar-lhe o diploma, o certificado de habilitações, a minha cédula profissional, o meu título de estágio, tudo isso. Amanhã mesmo sôtora!”.

Sem protocolos, vai-se ao cerne da questão. Quantas disciplinas fez em Coimbra e na Universidade Livre?

Mas para Rufo penetrar no passado era como entrar num corredor vazio onde já não se encontram as coisas e pessoas costumeiras: “Fiz umas quatro na Faculdade de Direito e outras tantas na Livre. Mas não sei quais. Mas eu tenho isso tudo e mando-lhe”.

Rufo reagiu ao telefonema do Nascer do SOL como se esperasse desde sempre aquele anúncio fatídico. Mas, passados uns segundos, como se o seu cérebro tivesse sido atravessado por um rápido vendaval, ligou. Pressente-se algum lodo no fundo do telefonema: “Eu estou-lhe a ligar porque ainda agora quando falamos nem tive reação. Mas olhe que até fiquei sem pinga de sangue! A vida de uma pessoa não se faz num rufo, desculpe a expressão. A vida de uma pessoa faz-se de muito trabalho, de muita canseira. Que as pessoas possam não gostar de mim, admito! Agora, estarem aqui a inventar histórias… Gostaria muito, mas muito mesmo, de saber quem foi a peça! Eu até ia a Lisboa Sôtora”.

No dia seguinte, ao contrário do que prometera, Rufo apenas enviara por correio eletrónico o diploma da universidade Portucalense que apenas confirma a licenciatura, sem ter discriminadas as cadeiras das três faculdades que frequentara, tal como prometera. Mantendo uma eclesiástica suavidade nos modos, o falso advogado justifica-se: “Peço imensa desculpa, sôtora. Afinal, não tenho os documentos. Vou ter de pedir os certificados. Mas, na sexta-feira, sem falta, tem as coisinhas aí”.

Esse dia chegou mas não alterou o rumo das coisas. Rufo empatava o tempo e apenas enviava uma cópia de um pedido feito à Portucalense, a universidade por ele burlada, do seu diploma completo prontificando-se a mandar os documentos mal os tivesse na sua posse. 

As fontes contactadas pelo Nascer do SOL garantem que Rufo utilizou este esquema com outras disciplinas além da de Direito Administrativo, o que não foi possível confirmar. Nos documentos da Universidade Portucalense, consta que aquele aluno teve equivalência a sete cadeiras – mas onde foram efetuadas é uma incógnita. Talvez o facto de Rufo ter frequentado a Universidade Livre, que fechou em 1986, dando depois origem à Portucalense, seja uma explicação, uma vez que os arquivos da primeira estão em paradeiro incerto.

Miguel Matias, ex-vice-presidente do Conselho Geral da Ordem dos Advogados da Ordem dos Advogados faz a radiografia da situação do ponto de vista jurídico: “Caso se verifique alguma desconformidade ou falta de correspondência com a verdade, poderemos estar perante a prática de um crime de usurpação de funções e de um crime de falsificação de documentos. Do ponto de vista disciplinar, verificando-se a desconformidade do título para o exercício das funções de advogado, tal poderá constituir motivo para a expulsão nos termos do Estatuto da Ordem dos Advogados.”

Enquanto isso, por Coimbra, entre os lentes, o falso advogado até ganhou o cognome do jurista romano Rufos. Um reputado académico não consegue deixar de ironizar: “Talvez tenha sido esse quem lhe tenha dado a equivalência”.   

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