A taxa de inoperacionalidade das Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER) aumentou em comparação com 2021 e os médicos alertam para uma situação que coloca em risco o socorro pré-hospitalar, com maior incidência no interior do país. A VMER da Guarda esteve parada ontem durante o dia e vai voltar a ficar parada na quarta-feira à tarde, entre 14h e as 20h, confirmou ao i a Unidade Local de Saúde da Guarda, não explicando os motivos nem quantas horas a viatura já esteve parada este mês. Também a viatura do Hospital Pêro da Covilhã, integrado no Centro Hospitalar da Cova da Beira, já esteve parada em junho e continua sem os turnos assegurados em pleno. Contactado pelo i, o hospital não respondeu até à hora de fecho.
Com o foco na saúde centrado nos serviços de obstetrícia, Carlos Cortes, presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos, que já tinha alertado este ano para a elevada taxa de inoperacionalidade das VMER no interior do país, diz ao i que há problemas tão ou mais graves a acontecer e este é um deles, indicando que 30% dos turnos da VMER da Covilhã têm estado inoperacionais. “É preocupante porque estamos a falar de áreas onde as pessoas vivem muito dispersas, com vias de comunicação mais difíceis para chegar às diferentes povoações. É uma zona muito sensível onde isto nunca devia acontecer e devia haver uma organização regional para acautelar estas situações e para nunca haver por exemplo turnos inoperacionais em simultâneo na Guarda e na Covilhã, e isso não é feito. Esta situação não é de hoje, não é do mês de junho, é conhecida do Governo, recorrente todos os meses e está a acontecer cada vez mais”, aponta.
Lei violada O i tentou obter um ponto de situação junto do INEM, que não respondeu às questões colocadas. Estão disponíveis as estatísticas de operacionalidade das viaturas médicas de emergência a nível nacional até abril, que mostram que nos primeiros quatro meses do ano houve um agravamento significativo dos turnos com carros parados face ao mesmo período de 2021, já vindo da segunda metade do ano passado.
Em janeiro, a taxa de inoperacionalidade das VMER foi de 2,67%, o dobro de janeiro de 2021 (1,32%). Em fevereiro, de 2,2% (um agravamento de 77% face ao mesmo mês do ano anterior). Em março de 2,27%, quase também o dobro de março de 2021. Em abril de 1,57%, um agravamento de 30% face abril deste ano. Na maioria das vezes o problema apontado pelos hospitais foi falta de tripulação.
Mas se estes são os números nacionais, camuflam as zonas onde mais turnos ficam por preencher. Vítor Almeida, presidente do Colégio da Competência de Emergência Médica, diz ao i que, além do interior do país, também em Gaia a VMER está com 6% de inoperacionalidade, recusando que haja um problema de falta de médicos para as escalas, mas antes uma “violação da lei por parte das administrações dos hospitais” que têm de alocar recursos a este serviço e não o fazem, sem consequências. “A cada minuto que as viaturas estão inoperacionais estão a violar a lei, porque têm de estar operacionais 24 sobre 24 e os turnos têm de ser garantidos”.
O médico defende que deve ser feito um estudo para perceber o impacto da indisponibilidade das VMERs, sublinhando que esta situação coloca em risco o socorro. “Para saber o real impacto que estas falhas e do não funcionamento de VMER basta analisar os pedidos classificados como tendo prioridade máxima pelo sistema de triagem do INEM em que seria obrigatório a ativação de uma equipa médica de suporte avançado de vida. O que se deve fazer é contabilizar quantos pedidos não obtiveram resposta de viatura médica em tempo útil. Este estudo devia ser feito para todos os meios do INEM e publicamente divulgado. Só esses dados nos poderão dar uma imagem do real impacto desta falha do sistema”.
O médico alerta ainda que o elevado nível inoperacionalidade em algumas viaturas acaba por afetar as outras regiões. “Uma viatura de Viseu que se dirige para a Guarda faz falta no distrito de Viseu, onde existem 500 mil habitantes dependentes daquela viatura médica. Tem impacto nas zonas afetadas e nas que têm de colmatar essas falhas nas zonas limítrofes”, diz o médico, que trabalha em Viseu.
Como se resolve? “Com o cumprimento escrupuloso da lei, obrigando os conselhos de administração dos hospitais a manter as escalas operacionais. A lei é muito clara e explica como se deve proceder em caso de falha de uma escala: o diretor clínico é obrigado a recrutar elementos que estão no hospital. Se um médico adoece de manhã e a equipa não consegue preencher a vaga, se não houver ninguém disponível na equipa de urgência, o diretor clínico tem de identificar por exemplo um anestesista no bloco operatório para ser deslocado para a viatura médica, que é um serviço prioritário. Há gente para fazer, é preciso é organização e a criação de incentivos para os profissionais”, diz.
“Há problemas mais graves que obstetrícia” Para Carlos Cortes, existe uma problema de recursos humanos, mas também de organização e falta de ação. “Já alertámos este ano o Ministério para estas VMER e nada foi feito, mesmo que fosse para ajudar estes hospitais a cumprir a lei. Sabem que há dificuldades, por isso espero que agora não façam uma comissão de acompanhamento para as VMER, porque o ministério devia ter estruturas a fazer permanentemente este acompanhamento e monitorização, como já devia fazer para a obstetrícia”, diz.
“Não é uma questão nova e é quase revoltante até para os habitantes da região saberem que sistematicamente isto acontece. Fala-se muito em interioridade, mas concretamente na resposta em saúde não se faz absolutamente nada”, acusa, considerando que os problemas estruturais no SNS deviam estar a ser encarados de forma mais abrangente: “A obstetrícia não é o principal problema da urgência. Houve um caso trágico, que lamentamos, mas por exemplo Medicina Interna já esteve fechada este ano 50 vezes no Hospital de Leiria. A via verde AVC encerrou várias vezes. Infelizmente veio a público uma situação dramática, mas as situações dramáticas acontecem em todas estas áreas e quando se cria uma comissão de acompanhamento de ginecologia e blocos de parto há logo uma mensagem infeliz que é dizer que as outras não são importantes, que na medicina interna, na cirurgia, na VMER não há um problema, quando há problemas até mais graves”.