A coordenadora do grupo de trabalho criado pelo Governo no início de 2019 para estudar uma melhoria dos serviços de urgência do país, que apresentaria à tutela uma proposta de medidas no final daquele ano, lamenta que o documento não tenha tido consequências e fala de desmotivação depois do trabalho realizado, que envolveu visitas a todas as Administrações Regionais de Saúde, em que a falta de recursos humanos era já uma das maiores preocupações. Com os olhos do público e o debate político centrado nas falhas dos serviços de urgência , e de obstetrícia em particular, Adelina Pereira, médica da Unidade Local de Saúde de Matosinhos hoje à frente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência – criada em 2020 – considera que o debate das últimas semanas, ao centrar-se quase na totalidade na obstetrícia e ignorando as recomendações do passado, tem sido estéril. «Do que propusemos, nada mudou», afirma, considerando que a «pandemia desculpa tudo» e que até ao momento têm sido propostos apenas remendos para uma parte do problema, que tem vindo a repetir-se todos os verões nas escalas, da mesma forma que no inverno as preocupações são os picos de procura. «A obstetrícia é apenas uma parte do icebergue dos problemas nas urgências», afirma.
Os reparos são apontados ao Ministério da Saúde mas também à Ordem dos Médicos: na altura, o grupo de trabalho, ainda que sem consenso total, voltou a defender a necessidade de criar a especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, apontando que Portugal é um de quatro países europeus que ainda não a tem instituída e que avançar permitiria uma maior especialização e estabilização dos serviços.
Atualmente, diz a médica, as urgências são o único serviço sem equipas médicas próprias, com médicos que rodam por outros serviços hospitalares e com mais solicitações do que no passado – no caso da Medicina Interna por exemplo, a hospitalização domiciliária ou cuidados paliativos, elenca – mais os tarefeiros contratados externamente aos hospitais, muitas vezes sem qualquer especialidade. Para Adelina Pereira, isto acaba por levar a problemas em cadeia, que começam nos turnos sem pessoas suficientes e acabam nas VMER com turnos sem tripulação por não haver médicos alocados em número suficiente aos serviços com formação específica. A criação da especialidade foi de resto o mote de um manifesto lançado pela sociedade em maio, que reuniu mais de 1200 assinaturas. A médica lamenta a falta de celeridade na avaliação em curso na Ordem dos Médicos e admite a resistência de algumas especialidades, nomeadamente Medicina Interna. «Sou internista. Sei que há alguma resistência, mas a preocupação deve ser garantir o correto funcionamento dos serviços com recursos qualificados e Medicina Interna hoje tem muito mais atribuições dentro do hospital, já não tem apenas as urgências e enfermarias».
20 anos de diagnósticos
Recuando a 2019, Adelina Pereira sublinha que uma das preocupações do grupo de trabalho foi verter no relatório como, ao longo dos anos, se repetiram diagnósticos e soluções para os serviços de urgência, muitas vezes com propostas idênticas.
Defendendo que as urgências não são o palco das maiores falhas do SNS, mas antes o local onde muitas falhas quer no acompanhamento pelos cuidados primários quer na própria literacia da população são amortecidas, a médica recorda que a preocupação em torno de uma reforma de urgências tem pelo menos 20 anos, o que ficou patente nos documentos entregues à tutela, que recordam vários pareceres e contributos. Só na última década contavam-se por exemplo trabalhos da Comissão para a Reavaliação da Rede Nacional de Emergência e Urgência (2012), um roteiro de intervenção em cuidados de emergência e urgência da DGS de 2014, do Grupo de Reforma Hospitalar (criado em 2016), listavam.
Além do relatório divulgado publicamente, Adelina Pereira diz que foi entregue à tutela um documento mais detalhado com o resultado das visitas às diferentes ARS, onde a falta de recursos humanos era em alguns locais já a grande preocupação, nomeadamente com o envelhecimento e feminização da profissão médica, que implica menor disponibilidade para trabalho de urgências por exemplo em situações de gravidez e maternidade. «Neste momento, o trabalho nas urgências depende em muitos locais da boa vontade e da proximidade que existe entre os médicos e as populações. Não há nenhum serviço que sobreviva assim. Em meios mais pequenos, encontrámos colegas de 70 anos a fazer urgências porque se não não havia serviço», diz a médica.
As propostas de 2019
Em 2019, este grupo de trabalho, que então juntou elementos dos hospitais, da Ordem dos Médicos e dos Enfermeiros, do INEM e da Direção Geral da Saúde, deixava várias propostas para concretização de mudanças nos serviços de após anos de, escreviam, «exaustivo debate».
A primeira resultava da constatação da dificuldade de gerir serviços que não funcionam como tal, lê-se, propondo então que as urgências tivessem equipas próprias, com formação adequada e liderança, inserindo-se aqui a criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência e de uma subespecialidade em Medicina Pediátrica de Urgência e recordando um despacho de 2002 em que tal já já estava previsto. Adelina Pereira diz que, já em 2019, se apurou que em alguns serviços de urgência 70% dos turnos dependiam de tarefeiros, com condições desiguais face aos restantes membros das equipas, o que aumentava a desmotivação, propondo a criação da especialidade e da carreira de medicina de urgência para estabilizar as equipas destes serviços.
O segundo problema a merecer propostas era a elevada afluência aos serviços de urgência por doentes não urgentes, que em 2018 tinham representado 43% das admissões, 2,6 milhões de episódios, números não muito diferentes dos atuais. Propunham campanhas junto da população sobre a correta utilização de serviços de urgência e o reforço dos cuidados primários, garantindo que os doentes poderiam ser observados em menos de 12 horas. Uma das preocupações, defendiam, devia ser simplificar a nomenclatura dos cuidados de saúde primários, estabilizando a oferta de ‘consultas urgentes’: «o doente tem de saber que entre as 8-20h nos dias úteis tem no seu centro de saúde possibilidade de ser observado. Tem de saber que aos fins de semana e feriados o atendimento funciona sempre no mesmo local e no mesmo horário (as equipas deslocam-se, não o doente). É fundamental estabilizar o local e o horário de atendimento urgente dos CSP», recomendavam.
Abrir canais de comunicação entre serviços de urgência e cuidados de saúde primários, com telemóveis dedicados a esse diálogo, por exemplo para apoio na realização de exames, era outra proposta. O grupo de trabalho defendia ainda a necessidade rever as linhas de apoio e referenciação, propondo por exemplo em relação ao SNS24 que fosse permitido agendar eletronicamente nos cuidados de saúde primários uma consulta em tempo útil (24 horas). Outra preocupação prendia-se com os utentes de lares, chamando a atenção para a falta de equidade no acesso à saúde para idosos institucionalizados.
«A transferência de doentes de instituições do setor social para os serviços de urgência, sem observação ou aconselhamento médico prévio, constitui uma prática que é frequente e que poderá ser prejudicial ao próprio doente», alertavam, propondo que fosse aberta a hipótese de os utentes de lares serem incluídos nas listas dos médicos de família ou que fosse encontrada uma solução. Tema que deu polémica no primeiro ano da pandemia, quando os médicos de família sobrecarregados com doentes covid-19 foram chamados para dar resposta em lares sem qualquer apoio clínico de base, e para o qual não existe uma solução.
Outra proposta passava por consultas abertas nos hospitais, fora do ambiente de urgência, que asseguradas por exemplo pelos médicos, por idade, já dispensados do serviço de urgências noturno ou diurno, o que acontece aos 50 e 55 anos. «Todos os dias, um período de consulta aberta hospitalar pode ser realizado por médicos que já estão dispensados de realizar trabalho nos serviços de urgência», propunham.
Auditorias e incentivos
Defendiam ainda a realização de auditorias aos doentes que recorrem às urgência, premiando os cuidados de saúde primários cujos utentes recorrem menos às urgências hospitalares. As propostas abrangiam ainda temas como as responsabilidades nos internamentos de doentes e o transporte entre hospitais. Adelina Pereira defende que o tema é complexo, mas que não se começar uma intervenção de fundo, os problemas vão continuar a repetir-se. «Parece que a solução é sempre criar um grupo de trabalho novo e recomeçar, quando já houve muito trabalho para trás», conclui. Questionado, o Ministério da Saúde não respondeu que seguimento foi dado a estas propostas e serão retomadas esta legislatura.
Nova especialidade decidida este ano
O grupo de trabalho criado pela Ordem dos Médicos em 2020 para analisar a proposta de uma nova especialidade de Medicina de Urgência e Emergência entregou este mês o relatório final. O ponto de situação foi feito ao Nascer do SOL pelo bastonário Miguel Guimarães, que sublinha o trabalho exaustivo feito e recusa falta de celeridade. «A criação de uma especialidade é um assunto sério. Foram ouvidos os colégios todos e demoraram o tempo que demoraram. Não é possível criar uma especialidade de um dia para o outro. Sabendo-se que há especialidades contra, importa que seja um tema debatido
e que sejam ponderados todos os prós e contras para ser tomada uma decisão sólida», diz. Entregue o relatório, será apreciado no próximo conselho nacional regular da Ordem, no início de julho, adianta o bastonário. O passo seguinte será a votação na Assembleia de Representantes, que pode aprovar ou chumbar. Medicina Intensiva foi
a última especialidade criada, em 2015, mas pela AR. Não passou na Assembleia de Representantes, tendo sido introduzida numa revisão do Estatuto da Ordem.