Coimbra: Junho de 1972. A velha rivalidade entre estudantes e futricas parece ter feito o mundo rodar ao contrário. A Académica, a Briosa Académica, do alto do seu orgulho de equipa das capas negras, com os seus rapazes licenciados que já tinham conseguido a proeza de ficar em segundo lugar no campeonato e de lutar, na Europa, contra emblemas de renome, não aguentou a pedalada da época que chegava ao fim e descia de divisão de mão dada com o Tirsense. Mas, apesar de tudo, a cidade estava em festa. O União, aquele que era apequenado com a diatribe perversa – «Se não houvesse União nem havia II Divisão» – libertara-se da maldição que pendia sobre o clube desde a sua fundação, em 1919, e cometia a proeza de, nas duas últimas jornadas, ultrapassar o Riopele, que chegou a ter um avanço muito confortável, aproveitando o empate dos minhotos em casa, contra outros minhotos, os do Famalicão (1-1) e tomar a dianteira da Zona Norte na luta pela subida, na qual também o Marinhense patinou à beira do final.
Juntou-se a malta, apertada até aos gorgomilos, no Campo da Arregaça, para assistir ao União de Coimbra-Salgueiros da jornada nº 30, a derradeira. Chapeuzinhos cónicos de papel e cinco mil litros de vinho. Isso mesmo! Cinco mil litros do tinto postos à disposição dos adeptos por bolsas generosas. Vitória por 3-1. «O União subiu! O União subiu!», gritavam as gargantas roucas que, naturalmente, precisavam de ser refrescadas. Pela primeira e única vez estaria entre os maiores já que, no final da época seguinte, o mundo coimbrão do pontapé na bola deixou de ficar de pernas para o ar, e a Académica subiu caindo o União num dos três lugares destinados à despromoção. Há coisas que parece que nunca mudam.
Dia 5 de Junho: «Se queres que te diga», fala o Zé Vítor, o José Vítor Fernandes Rodrigues, o Zé Ladrão para quem o conhece de pequeno, apenas o Zé para quem, como eu, o conhece e estima há bem mais de trinta anos, que costumava jogar do lado esquerdo dessa equipa festejante, «foi uma pena que a Académica tivesse descido nesse ano. Estou a falar como alguém que é de Coimbra e gosta de futebol. Um jogo entre a Académica e o União na I Divisão teria sido extraordinário para a cidade, que nunca conseguiu ter as duas equipas no escalão principal. Imagino a disputa que seria. Aliás, pouco tempo depois, houve um dérbi de Coimbra na II Divisão que meteu uma confusão danada com invasão de campo e tudo. Agora, claro, se me perguntares o que pensavam os fanáticos do União, tenho de dizer que a festa foi a dobrar. Era, finalmente, o assumir do clube como um verdadeiro representante da cidade no futebol português. Deixava de estar à sombra da Académica, como sempre tinha estado. Era um orgulho imenso para todos aqueles que os estudantes tratavam por cima do ombro, chamando-lhes merceeiros».
Calma, que esta dos merceeiros tem que se lhe diga. Porque o União começou a ser pensado e desejado por gente ligada ao comércio da cidade que se reunia com frequência, pela noite dentro, na sapataria do Afonso Chato, no Largo do Romal, a partir de Outubro de 1918. Gente que queria um clube popular, diferente, longe dos tiques da rapaziada da Academia que se dava a ares superiores. Verdadeiramente, um clube de futricas.
A ideia propagou-se. As reuniões deixaram de se realizar no Largo do Romal e passaram para outra casa comercial instalada no, ao tempo, Largo do Sansão, hoje em dia Praça 8 de Maio, mesmo ali na Baixa. Fundou-se o União no dia 2 de Junho de 1919, mas não se evitou a cagança de lhe dar um toque inglês – União Foot-Ball Coimbra Club. Só mais tarde é que se aportuguesou – Clube de Futebol União de Coimbra. Agora, após umas poucas de tropelias que conduziram o clube à insolvência, é o Clube União 1919, mas pouco importa. Estamos a falar de algo que se passou há cinquenta anos.
Campeões!
A festa dos adeptos do União durou dias a fio. Para já, cinco mil litros de tinto não se bebem de um momento para o outro, embora Coimbra fosse famosa por muitos dos esponjas que por lá passaram. Depois porque, na semana seguinte, dia 11, em Tomar, no Municipal da beira do_Nabão, que levava o nome de José Francisco Ulrich, estava o título em jogo. Contra o Montijo, vencedor da Zona Sul tão tão à vontade que até foi à vontadinha. Não se pode dizer que, perante uma equipa que em trinta jornadas só perdera um jogo, o União fosse favorito. Do lado deles havia o Bambo e o Manuel José, o_Espírito Santo, o Arnaldo e o Porfírio, por exemplo. Francisco Andrade, o treinador dos de Coimbra, fazia entrar o onze titular: Melo; Leopoldo, Baptista, Carlinhos e Seabra; Rui Silva e Zeca;_Machado, Congo, Nisa e Luíz Carlos. Congo nascera no Congo, no Congo Belga, mas era de Coimbra e para lá voltou pouco depois de nascer. Nome de baptismo: Carlos Alberto Cardoso Pereira. «Veio do Clube Nacional, lembras-te do Nacional?», pergunta o Zé e responde de imediato: «Era um clube de Coimbra que só tinha equipas até aos juniores. Tanto a Académica como o União foram lá buscar muitos jogadores». Luís Carlos era brasileiro, o único brasileiro, tal como Leopoldo era moçambicano, único de Moçambique também. «O Luís Carlos vivia nas nuvens. Uma vez, o treinador mandou-o entrar à beira do fim e nós, que estávamos a ganhar 2-0, oferecemos um auto-golo. Na cabina veio pedir desculpa, que tinha sido uma pena sofrer aquele golo mesmo no final. Convenceu-se de que tínhamos perdido. Não prestou nenhuma atenção à primeira parte».
O jogo contra o Montijo, afinal, correu da melhor maneira. Nisa fez 1-0 logo no início e depois também fez o 2-0, mas no início da segunda parte. Os ribatejanos reduziram logo a seguir, por Louceiro, mas por muito que porfiassem já nada tiraria a taça ao União. «Entrei na segunda parte, mas ainda fui a tempo de impedir o 2-2. Num canto, a um ou dois minutos do fim. O Melo largou a bola, mas eu ficava sempre junto do poste mais distante. Era cá uma mania minha. A bola ia a entrar e eu dei um biqueiro com toda a força que tinha. Já não havia tempo para brincadeiras. Fomos campeões! E houve uma viagem fantástica de camioneta de regresso a Coimbra, com gente dependurada no tecto. O teu colega Fernando Assis Pacheco fez essa viagem connosco. E a mulher do Melo também, porque ele tinha acabado de se casar. Há fotografias dos dois no meio de nós e com a taça. E uma minha, no balneário, quase nu». Pois, essa também nós temos. Quero dizer, o Zé deu-nos. E a do grande Assis Pacheco também, mas desfocada. Azar o nosso.
Uma das tristezas do Zé Vítor é não ter jogado na I Divisão com a camisola do_União: «O_Chico Andrade resolveu que a equipa tinha de ser completamente profissional. Eu trabalhava em São Martinho do Porto e voltava para Coimbra depois do trabalho, só podia treinar uma vez por dia. Fui despachado. Mas não fui só eu. Fomos uns sete. Até o Seabra, que já era médico, e um calmeirão de um metro e noventa. O Chico embirrou com a gente, nada a fazer». Mas o grupo era unido e continuou unido. De tal forma que se juntaram, na passada semana, num almoço que trouxe gente de todo o país: «Só para veres o valor que isto tem para todos nós. Ninguém nos convidou. Cada um apareceu a expensas suas. Por amizade, por camaradagem. Comemorámos um dos momentos mais bonitos das nossas vidas! Foi fantástico!». E se o merecem. Sobretudo o Zé. Grande Zé Vítor!