Tragédia nos Alpes. Fratura de glaciar põe a nu risco climático

Itália está de luto com a morte de pelo menos sete montanhistas após fratura de glaciar da montanha de Marmolada, no norte do país. Especialistas já alertaram que fenómeno poderá repetir-se e pede-se ação. Glaciar pode derreter por completo no espaço de duas décadas. 

Um cenário duro, com corpos irreconhecíveis, desaparecidos e uma tragédia para que já havia alertas nos últimos anos de aumento continuado das temperaturas médias e degelo acentuado dos glaciares nos Alpes italianos. Mais de 24 horas depois de uma avalanche de gelo e rocha provocada pela fratura de um glaciar entre Punta Rocca e Punta Penia na montanha de Marmolada, conhecida como a rainha das Dolomitas – a grande cadeia montanhosa no norte de Itália – as buscas prosseguiam ontem ao final do dia, com sete mortos confirmados e ainda mais de uma dezena de desaparecidos e feridos em estado grave. 

De visita ao local, o primeiro-ministro italiano encontrou-se com familiares das vítimas na corporação de bombeiros de Canazei, resort alpino a 1450 m de altitude – metade daquela a que caminhavam os montanhistas – transformado em posto de comando da operação de socorro depois da tragédia no domingo. Lá, no coração da montanha, Mario Draghi assumiu a ligação entre o desabamento e as alterações climáticas. “Agora temos de tomar medidas para que o que aconteceu em Marmolada não aconteça de novo em Itália”, afirmou, garantindo que o Governo trabalhará para que uma tragédia assim não volte a acontecer.

Os especialistas, contudo, não estão otimistas, nem com o desenrolar das operações nem com o que se espera na região com as projeções de aquecimento global. No imediato, as condições na montanha são muito difíceis e não está descartada a hipótese de novos desabamentos – ontem voltou a registar-se um pequeno colapso no local onde no domingo se desprendeu o “serac” que atingiu fatalmente os montanhistas, o termo usado para designar um fragmento de glaciar que se solta. 

Helicópteros sobrevoam a zona com equipamento para detetar o sinal de telemóveis, uma das armas à mão das equipas de resgate para tentar localizar os desaparecidos. Faziam um dos trilhos mais emblemáticos do pico, a mais de 3 mil metros de altitude. Mas não sendo obrigatório um registo, nem se sabe ao certo quantas pessoas estariam no local, apontando-se ontem para 13 desaparecidos. “Estamos a ser obrigados a contar os carros nos parques estacionamento, o que é ainda mais trágico havendo estrangeiros que podem não ter avisado em casa e que poderiam só voltar no final das férias e isso custa ainda mais. O deslizamento deixa os corpos dilacerados, há um problema de identificação”, disse a meio da tarde desta segunda-feira o governador da região de Veneto, Luca Zaia, citado pelo jornal italiano La Repubblica. Dos sete corpos resgatados, só quatro vítimas tinham sido ontem identificadas.

À consternação, somam-se os apelos para que se tirem ilações e esse é o confronto que se torna chocante a cada tragédia ou cataclismo associado às mudanças no clima. “Este é o momento de luto, de proximidade com as famílias das vítimas, de agradecimento aos socorristas. Mas, diante de uma catástrofe como a da Marmolada, acredito que nossa comunidade não pode deixar de se questionar: devemos resignarmo-nos a continuar a chorar? Ou não seria melhor agir agora para contrariar e mitigar o aumento das temperaturas?”, questionou o prefeito de Trento, Franco Ianeselli. 
 

Recorde de temperatura no cume Se a história do acidente será ainda feita, o que se sabe por agora é que o norte de Itália vive a maior seca dos últimos 70 anos, um cenário transversal ao sul da Europa num julho que ameaça ser atipicamente quente: no Reino Unido, os modelos estão a prever pela primeira vez temperaturas na casa dos 40ºC. 
No alto da montanha de Marmolada, a tragédia aconteceu um dia depois de ter sido batido o recorde de temperatura com 10,4 graus no cume, quando mesmo no verão se espera que os termómetros andem mais perto do zero quando se está a 3,343 m de altitude.

Uma das críticas que já está a ser feita às autoridades locais é, diante das temperaturas fora do normal, não ter sido limitada a circulação na montanha. “Ninguém poderia saber quando e onde, mas a de ontem no glaciar da Marmolada é uma tragédia mais do que anunciada e por isso ainda mais grave e dolorosa”, disse, em comunicado, o WWF – Fundo Mundial para a Natureza, lembrando outras tragédias nos Alpes europeus nos últimos anos, “todas rapidamente esquecidos”. A organização recordou que todos os glaciares abaixo de 3500 metros, como é o caso, estão em risco de desaparecer nos próximos 20 a 30 anos e que o último inventário dos glaciares italianos mostra um forte recuo da superfície gelada: em 1962 eram 519 km2, em 1989 chegaram a ser 609 km2 e, no último mapeamento, de 2015, os glaciares tinham reduzido para 368km2, um recuo de 40%. Os investigadores notaram o aumento de glaciares, mas isso foi apontado como sinal de perigo, por resultar da fragmentação dos blocos preexistentes. “Nos últimos 150 anos, alguns glaciares perderam mais de 2 quilómetros de comprimento, mas a sua espessura também é reduzida, num único verão pode diminuir até seis metros”, continuava o braço da organização em Itália, pedindo ao Governo medidas de mitigação e adaptação às alterações climáticas. 

Renato Colucci, especialista em glaciares que em 2019 foi um dos autores de um estudo sobre Marmolada, que então alertou que o mais icónico glaciar das Dolomitas iria desaparecer no espaço de duas a três décadas, tendo encolhido 30% entre 2004 e 2015, explicou que uma tragédia assim pode resultar de um acumular de fatores: as temperaturas acima da média das últimas semanas e a pouca neve no inverno passado, que protege as bacias de gelo, o que terá criado uma base de água que favorece este tipo de deslocamentos. “Infelizmente, estes eventos deverão repetir-se nos próximos anos e também este verão. Temos de estar em alerta máximo”, disse o investigador da Universidade Politécnica Marche, em Ancona, e também membro do Conselho Nacional de Investigação Italiano, citado pela RAI News. A esta velocidade, possivelmente o que previram em 2019 acontecerá antes e, no final do século, 70% dos glaciares alpinos terão desaparecido, 96% no pior cenário. Colucci é direto: “Os glaciares estão num ambiente onde não podem resistir. É como tirar um cubo de gelo do congelador e colocá-lo na mesa da cozinha”.