Privatização da saúde pode ser ‘um erro’

Uma análise publicada na Lancet abriu o debate no Reino Unido ao associar ‘privatização’ de cuidados de saúde a mais mortes evitáveis. Autores reiteram resultados ao Nascer do SOL: ‘Comparar investimento público e privado pode ser um erro porque são diferentes’, dizem.  

Com os serviços de saúde europeus a enfrentarem problemas comuns do lado da procura e da oferta – mais pressão pelo envelhecimento e carga de doenças e falta de pessoal, encerramentos de serviços de urgências, de camas e tempos de espera elevados – uma análise publicada recentemente no Reino Unido por investigadores da Universidade de Oxford trouxe um novo elemento ao debate em torno do impacto do recurso a privados, analisando o que aconteceu no país desde, que em 2012, foram abertas portas ao outsourcing de cuidados com prestadores privados. Analisando o período entre 2012 e 2020, Benjamin Goodair e Aaron Reeves concluíram que o aumento do recurso a privados – que neste período de traduziu em mais de 600 mil protocolos no país – pode ser associado a um aumento na mortalidade: por cada aumento anual de um ponto percentual na despesa do serviço de saúde inglês com o setor privado lucrativo, houve um aumento de 0,38% na mortalidade evitável, no ano seguinte, entrando nesta definição «mortes que podem ser largamente evitadas com intervenções de saúde atempadas e efetivas, incluindo prevenção secundária e tratamento».

No artigo publicado na revista Lancet, os autores invocam duas teses: por um lado, a tendência para o corte de custos de entidades com propósitos de lucro poder levar, com maior prestação de serviços, a menor qualidade. Por outro lado, o que descrevem como uma dinâmica de ‘desnatação’ dos serviços públicos, que acabam a concentrar casos mais complexos com menos meios, nomeadamente pessoal.«A maioria dos resultados não me surpreenderam na medida em que havia evidência anterior de outros países que sugeria que a provisão de serviços públicos por entidades lucrativas resultava em menor qualidade», diz ao Nascer do SOL Benjamin Goodair. 

O autor considera que o argumento de que havendo já investimento de infraestrutura privada, ‘pode ser melhor aproveitá-lo’, deve ter isto em conta. «A nossa evidência sugere que pode ser um erro em termos da qualidade dos cuidados recebidos pelos doentes. Pode também ser um erro comparar investimento público com investimento privado. O tipo de infraestrutura e serviços que oferecem aos doentes podem ser diferentes e focados em condições específicas, por isso muitas vezes não são sobreponíveis». O facto de, quando se avalia resultados, o perfil clínico dos doentes vistos no privado e no público poder ser diferente em termos de severidade, limita também comparações, referem.

A correlação com o aumento da mortalidade foi feita retirando o peso de outras determinantes de saúde. Ao SOL, Benjamin Goodair admite que outros fatores como o aumento de tempo de espera nos serviços de saúde públicos também pode levar isso, defendendo que as causas devem ser aprofundadas, mas considerando este um efeito isolado. «Observámos uma direta associação entre privatização e mortalidade mais elevada e o que explica esta relação deve ser investigado».

Em causa está a reforma que desde 2012 levou à criação, no serviço de saúde inglês, de comissões locais que gerem a contratação de cuidados. Em 2020, conclui a análise, 6% da despesa era comissionada ao setor privado lucrativo. A realidade portuguesa não é comparável, mas estas estruturas são algo semelhante aos ‘sistemas locais de saúde’ previstas agora de novo no estatuto do SNS, no Reino Unido com poder de decisão para definir respostas de saúde para a população e agora de novo a passar por uma reforma que estabelece comissões responsáveis por cuidados integrados. 

Questionado sobre os pontos comuns na turbulência que se vive em serviços de saúde de base diferente na Europa, seja o inglês e o português (maioritariamente de prestação pública) ou o francês, de modelo bismarkiano e assente em prestadores privados e públicos, Goodair explica que o que pretendem fazer é analisar de forma qualitativa a transição no Reino Unido precisamente para um modelo misto, o percurso iniciado nas últimas décadas e que motiva debates intensos. «Levanta a questão de que em alguns aspetos a transição para um sistema que os prestadores competem uns com os outros pode não ser do melhor interesse dos doentes», diz.

Despesa do SNS aumenta 

Em Portugal não há dados comparáveis ou uma análise sobre resultados, mas os fornecimentos de serviços externos também têm aumentado. Retirando as PPP (mantém-se apenas Cascais), a maioria dos fornecimentos externos prende-se com medicamentos e consumíveis clínicos, mas os gastos com Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica – a grande área em que o SNS recorre ao privado – aumentou nos últimos anos e é este ano a rubrica em que a despesa mais cresce. Nos primeiros cinco meses deste ano, a despesa com exames, análises e tratamentos externos pagos pelo SNS, por exemplo fisioterapia prescrita pelos médicos, somou 633,4 milhões de euros, um aumento de 29,8% face a 2021, revela a última Síntese de Execução Orçamental, que atribui o aumento sobretudo a mais testes covid. 

Ainda assim, nos primeiros cinco meses de 2019, pré-pandemia, esta rubrica ficava-se nos 400 ME até maio, pelo que o SNS está a gastar atualmente mais 1,5 milhões de euros por dia. No global, a despesa do SNS somou 5 236,3 milhões de euros nos primeiros cinco meses deste ano, mais 6,9% do que 2021, o que deverá absorver todo o reforço orçamental (o défice em maio era já de -445ME). Comparando com 2019, o SNS gastou mais mil milhões de euros nos primeiros cinco meses do ano (4 203,8 milhões), fruto do aumento das despesas com pessoal e fornecimentos e serviços externos no global – o que ao longo do ano deverá sentir ainda o peso de novas medidas e inflação. São mais 6,8 milhões de euros por dia do que em 2019.