Foi assim há algum tempo que o sucesso de uma banda era determinado pelo número de discos que vendia, pela posição que as suas músicas alcançavam nos tops e pela quantidade de fãs que mobilizam para cada concerto. Antes do MP3, do Napster, do iTunes, de concertos virtuais e do regresso do vinil. Não foi assim há tanto tempo.
Esta memória avivou-se depois de ver os mais recentes episódios da série Stranger Things e de me aperceber do fenómeno em torno da canção Running Up That Hill de Kate Bush. No espaço de duas semanas, a canção lançada em 1985, passou a fazer parte das playlists na rádio mas, principalmente, das playlists dos muitos jovens. Duvido muito da grande popularidade da Kate Bush junto dos mais jovens, antes da quarta temporada da série. Só no Spotiffy, Running Up That Hill foi reproduzida trezentos e setenta milhões de vezes, sensivelmente o mesmo número de vezes que o clássico Alive dos Pearl Jam. Está no top 10 dos principais tops, incluindo o iTunes. Até dia 3 de julho, Kate Bush terá faturado mais de dois milhões de dólares em direitos, sem mexer uma palha, ou quase.
Se hoje as receitas decorrentes de uma canção vêm de fontes muito diferentes, neste caso específico inexistentes à data do seu lançamento, tudo devem à forma como são promovidas. A quarta temporada de Stranger Things foi amplamente divulgada, com grandes volumes de investimento e poucas ideias originais, boas, mas poucas. Poucos internautas terão escapado a um teaser ou ao trailer da série. Mas não foi isso que tornou a música tão popular. «Esperamos que entendam que queremos honrar a energia que as audiências estão a gerar neste momento. Uma energia que sentimos como muito especial, única e, sinceramente, mobilizadora» escreveu Kate Bush. Esta energia não se cria (só) a partir de uma campanha de comunicação.
Entender o fenómeno que está a acontecer com Kate Bush passa muito mais por uma análise do conteúdo do que pela eficácia da estratégia de promoção da série. O que funcionou e irá continuar a funcionar é o facto de um conteúdo de qualidade (goste-se ou não da série, a qualidade da produção e dos atores é inegável), com o qual milhões de pessoas se relacionam, ter integrado um outro na sua história, valorizando-se ambos com isso. Runming Up That Hill é a música perfeita para a personagem e contexto em que aparece, acima de tudo, porque toda a gente acha que sim. Ou seja, aquela que é provavelmente a estratégia comercial mais eficaz: o momento do conhecimento acontece num momento em que estamos particularmente recetivos, estão disponíveis múltiplas fontes para aprofundarmos o nosso conhecimento e relação com o conteúdo, o processo de compra é simples, o reforço da mensagem e recrutamento de novos utilizadores acontece de forma orgânica, incentivada por fãs, que são embaixadores e promotores do conteúdo.
Por enquanto a série continua a bater recordes de minutos de visualização. Nos Estados Unidos, terão sido cerca de 27 milhões de utilizadores da plataforma a devorarem a quarta série no primeiro fim de semana, dois episódios com uma duração conjunta de pouco mais de quatro horas. Resta saber se a canção de Kate Bush é mesmo algo que gostemos de ouvir, ou apenas uma forma de nos assumirmos fãs da série. Há um ponto de comparação, no último episódio, umas das cenas mais magnânimas acontece ao som de um dos maiores clássicos dos Metallica. Neste caso, desde 1986 que Master of Puppets é tocado pelos quatro cantos do mundo, por uma das grandes bandas de todos os tempos. Veremos o impacto que terá. Para já, ocupa a segunda posição no ranking do iTunes, é fácil adivinhar a que está em primeiro.
Nenhuma campanha ou ação de comercial consegue contrariar a força de um movimento popular, espontâneo, com o qual estabelecemos uma relação emocional. Mas compete aos marketeers perceberem, antes de todos os outros, quais os conteúdos e momentos em que a relação pode ser criada e ativada. Ou seja, contexto e mensagem em perfeita sintonia, algo com que nenhum grp ou afiliado é capaz de competir.
Senior Manager da Accenture Song