Nuno Bettencourt. “As pessoas não precisam de voar até aqui, até preferimos que aconteça”

O guitarrista lusodescendente falou ao i sobre o seu novo festival, Atlantis Concert For Earth, com o intuito de criar um diálogo sobre a proteção do meio ambiente.

Era um sonho antigo de Nuno Bettencourt, guitarrista lusodescendente, nascido nos Açores, da banda de rock norte-americana, Extreme, responsáveis pela icónica balada More Than Words, realizar um festival na Lagoa das Sete Cidades, que se situa em Ponta Delgada, e, na próxima sexta-feira, este projeto vai finalmente tornar-se uma realidade, com o nome, Atlantis Concert for Earth. 

“Os Açores sempre pareceram um local mágico, é a minha terra-mãe e sempre que regresso aqui fico arrebatado pela sua beleza”, confessou ao i Bettencourt. “Parece um local saído de um conto de fadas, para mim, é como se fosse Atlântida”.

Segundo explica o guitarrista, este não pretende ser apenas mais um festival para competir com os grandes eventos, do continente, como o NOS Alive ou o Rock In Rio, este evento, que vai decorrer nos dias 22 e 23 de julho, com artistas como os Black Eyed Peas, Stone Temple Pilots ou o Pitbull e, em formato de concerto virtual, Sting e os Queen, serve para a sensibilização das alterações climáticas e a destruição do ambiente. 

“Podia ter feito este evento noutro lado qualquer, tinha sido tão mais fácil, mas pensei que seria incrível os Açores terem o seu próprio festival, não só pela música, mas que fosse também o único sítio dedicado à causa de salvar o planeta”, confessou o músico. “Espero que seja algo que deixe a ilha orgulhosa e que possam apoiar esta luta”.
O festival vai ser transmitido online (com possibilidade de receber doações) e o valor da venda dos bilhetes (25 euros para os dois dias) vai ser doado a associações sem fins lucrativos.

Onde surgiu a ideia para fazer o concerto Atlantis Concert for Earth?
Neste momento, enquanto estou a falar contigo, estou em pé na mesma zona em que pensei para mim mesmo: “Imagina um dia fazer aqui um ‘Woodstock’. Não imaginava necessariamente criar um concerto, mas sim algo verdadeiramente especial. Não queria que fosse só mais um concerto, já temos muitos na Europa, em Lisboa e à volta do mundo. Isto foi uma ideia que tive há 17 anos e que tenho vindo a pensar e desenvolver, mas tem sido muito difícil conseguir concretizar. Tive que falar com três governos diferentes, às vezes quando finalmente davam autorização, depois já não eram eleitos e tinha que voltar a repetir este processo. Mas assim que tivemos autorização para realizar o festival em São Miguel conseguimos avançar com o projeto e, agora, finalmente vai acontecer. 

O nome Atlantis está ligado à beleza da ilha extinta ou à destruição que fez com que esta fosse afundada no Oceano?
Apesar de existirem opiniões contraditórias sobre a existência de Atlântida, todos os mapas, mitológicos ou não, que existem sobre este local, apontam que a sua localização era nos Açores. Sempre achei essa ligação muito intrigante e pensei que fazia todo o sentido criar esta ponte entre a natureza, mas também com um lado de perda, provocado pelas alterações climáticas e a destruição da natureza. Os Açores sempre pareceram um local mágico, é a minha terra-mãe e sempre que regresso aqui fico arrebatado pela sua beleza. Parece um local saído de um conto de fadas, para mim, é como se fosse Atlântida. 

Enquanto um nativo dos Açores, esse foi também um fator decisivo para criar um festival nesse local?
Foi-me dito por muitas pessoas que trabalham nesta indústria para não realizar o concerto na cratera das Sete Cidades porque era demasiado difícil, as bandas não iriam querer vir aqui tocar, os camiões não conseguiam chegar aos locais. Ninguém acreditava que isto fosse possível, mas foi assim que visualizei. Não podia ser de outra forma, até porque a causa que estamos a defender, sobre a conservação do ambiente, se fizéssemos noutro local qualquer seria apenas mais um evento de caridade. Assim, a mensagem de protegermos aquilo que temos neste momento será muito mais forte. 

Estas intenções foram bem recebidas por parte da população local?
Assim que foi anunciado inúmeras pessoas, como políticos, começaram a surgir e a dizer como estamos a destruir este local, mas o mais estranho é que se eu não tivesse colocada a palavra “Earth” neste evento e se fosse só com intenção de fazer dinheiro, porque somos uma organização sem fins lucrativos, ninguém se iria queixar. Este é o mesmo local onde fazem corridas de rally e ninguém se preocupa nessas ocasiões. Existem inúmeros camiões e tratores com combustíveis diesel, produções enormes de vacas que produzem estrume que origina efeito de estufa… há tantas coisas que estão a fazer de errado, mas depois vem apontar o dedo a mim. Ninguém se preocupou que uma das primeiras coisas que eu tenha feito foi encontrar-me com uma organização do Reino Unido, Greener Festival, e ter-lhes dito que só iria fazer o festival se este festival fosse integralmente “verde”. 

Como conseguiu realizar essa ambição?
Não podia existir uma única produção de carbono. Temos trabalhado imenso e realizado diversos estudos sobre o solo onde estamos a trabalhar e os veículos que estão a chegar aqui, para garantir que continuamos carbono negativo e sem usar plástico. No caso de produzirmos, vamos tentar reduzir a nossa pegada ao pagar a empresas cem euros por cada tonelada para tentar remover o carbono do ar e para plantar cada árvore que destruirmos. 

Estava a falar sobre as dificuldades logísticas de criar este festival e as dificuldades para os “festivaleiros”? Será difícil para, por exemplo, as pessoas do continente chegarem aos Açores e aos locais dos concertos?
Sempre soubemos que a grande maioria das pessoas que viriam a este evento seriam de São Miguel ou das outras ilhas dos Açores. As pessoas não precisam de voar até aqui, até é algo que preferimos que aconteça. Quantos menos aviões circularem menos poluição vai gerar. Sempre quisemos que este concerto fosse para as pessoas dos Açores e que fosse acessível ao resto do mundo através da internet. Dessa forma, deixamos uma pegada de carbono mais pequena e é mais fácil para todos os locais conseguirem comprar bilhetes. Lisboa já tem o Rock in Rio, o NOS Alive, o Porto tem o NOS Primavera Sound, o Reino Unido tem os seus festivais, eles têm tudo aquilo que precisam. Ninguém precisa de vir aqui ver os Black Eyed Peas, eles até acabaram de atuar no Rock in Rio. 

Diria que este festival é dedicado aos locais dos Açores?
Este é um concerto em que eu quis garantir que fosse possível que as pessoas pudessem vir das suas casas, cruzar a ilha para poderem ver estes artistas incríveis. Podia ter feito este evento noutro lado qualquer, tinha sido tão mais fácil, mas pensei que seria incrível os Açores terem o seu próprio festival, não só pela música, mas que fosse também o único sítio dedicado à causa de salvar o planeta. Espero que seja algo que deixe a ilha orgulhosa e que possam apoiar esta luta. Não tenho muito para dar no lado da conservação do planeta, mas posso tentar que a minha comunidade musical se junte todos os anos para homenagear o povo dos Açores e recorde a causa ambiental. 

Então não diria que o Atlantis está a tentar competir com festivais como o NOS Alive ou o Rock in Rio para se tornar num dos maiores festivais de Portugal?
Não queremos competir com ninguém, não é isso que está em causa. Nós dizemos sempre aos artistas que os vamos usar. Disse isto ao Brian May e a todos os outros. Vou usá-los para poder entreter as pessoas para que elas nos possam ouvir durante uns dez minutos entre cada concerto. Queremos acabar com toda a negatividade e com todo o silêncio em torno da emergência climática e começar um movimento de soluções. 

Neste caso, este é um festival de música em que a música cai para segundo plano.
Este evento é inteiramente dedicado à conservação do ambiente, a música serve como um “doce” para darmos um “medicamento”, a educação, às pessoas. Queremos mostrar às pessoas que existem pessoas a limpar o oceano pacífico, que é possível remover todo o plástico ou que existem fontes de energia no núcleo da terra que é possível ser aproveitada. No final do dia, este é um concerto dedicado aos nossos filhos e aos seus futuros. Quando convido artistas para atuar neste concerto, não lhes pergunto se me podem fazer um favor, eu digo-lhes que este concerto é para eles. Disse ao Brian May, ao Pitbull ou aos Stone Temple Pilots que este concerto é para ele e os seus filhos. O ato mais egoísta que podem fazer é participar neste concerto porque não o fazem por mim, pelo Planeta, estão a fazê-lo para vocês e todas as outras pessoas do mundo. 

Estava a falar sobre o “açúcar” deste festival, os músicos, qual foi o critério para a seleção deste cartaz?
Queria balançar os estilos musicais que eram possíveis de se ouvir no festival, entre o pop, o R&B, música de dança, rock e até um pouco de punk. Tentei criar um ambiente de diversidade, mas, para ser honesto, acabámos com este cartaz final porque foi muito difícil confirmar a presença de diversos artistas, ora porque estavam em tour ou até porque muitos músicos acabavam por ignorar os meus convites. 

Foi complicado lidar com estas rejeições?
Muitos músicos falam sobre a importância de proteger o ambiente, mas acabavam por rejeitar este meu convite ou até por me ignorar. Neste processo apercebi-me de uma coisa: é muito difícil fazer algo de bom. As pessoas estão mais preocupadas em tentar discutir e gritar umas com as outras. Mas até tem sido bom, porque assim podemos tentar abrir um diálogo e debater soluções sobre como podemos proteger o planeta. Não queremos saber em quem é que votaram, se são homossexuais, negros, brancos, português ou espanhol. Este festival é sobre as nossas famílias e os nossos futuros. Vamos esquecer todo o barulho e negatividade, juntar-nos e tentar proteger aquilo que mais precisamos para sobreviver, que é ar puro, água limpa e solo. 

Algumas das performances do festival vão acontecer num registo online, como é o caso do Sting e os Queen, isto foi também uma forma de evitar produzir mais carbono desnecessariamente?
Pensámos nisto de duas formas. Primeiro não queríamos mais do que quatro ou cinco artistas a atuar por dia, porque podíamos ter optado por convidar dezenas de artistas para atuar em vários palcos como nos outros festivais, mas decidimos manter os planos mais comedidos, contar apenas com dez mil pessoas, manter a pegada de carbono baixa na primeira edição do festival e perceber como é que a podemos controlar. Mas também pensei que se tivéssemos uma banda como os Queen ou os Sting, que ofereceram contributos generosos para a causa, a atuar online seria excelente, porque as pessoas poderiam experienciar e ouvir as suas músicas favoritas ao vivo na mesma, apesar de ser num ecrã. 

Se tivesse de escolher um artista ou um concerto de sonho para ver neste festival qual seria?
Existem demasiados para listar (risos). Mas sinto-me muito humilde e orgulhoso quando olho para o cartaz que conseguimos construir. Temos falado com outras bandas e estamos muito ansiosos para perceber qual vai ser o futuro deste festival. Também gostava muito de colaborar com músicos jovens que, para além de talentosos, se preocupam em comunicar com a sua audiência e falar sobre todos os problemas e injustiças do nosso planeta.