Ainda que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) esteja a prever o início da descida das temperaturas a partir de hoje, a situação de contingência em Portugal continental devido ao risco de incêndio vai ser prolongada até domingo. “Apesar de as ignições terem tendência para baixar, há um legado que passa de dia para dia, para além do crescente desgaste das forças que estão no terreno”, alertou António Costa.
Quem concorda com o primeiro-ministro, defendendo a declaração do segundo nível de resposta previsto na lei da Proteção Civil, tendo em conta a ocorrência ou iminência de acidente grave ou catástrofe – sendo reconhecida a necessidade de adotar medidas preventivas e ou especiais de reação não mobilizáveis no âmbito municipal – é Emanuel Oliveira, consultor para organismos do Estado na área dos riscos naturais e dos incêndios florestais, deixando claro que “as condições existem e vão continuar a existir: vivemos uma semana complicada com temperaturas altas, estamos nesta com mais calor ainda, mas o pior é aquilo que poderá estar para vir”.
“Isto porque os modelos meteorológicos apontam para a ausência de chuva este mês, estamos num período de seca extrema, temos altas temperaturas… Há um panorama com características muito próprias. Na minha opinião, a situação de contingência deveria manter-se enquanto não tivermos um aumento significativo de humidade e precipitação”, avança o profissional que exerceu funções de comandante operacional municipal da Proteção Civil em Vila Nova de Cerveira entre março de 2009 e março de 2014.
“Eu sei que tal é condicionante (romarias típicas, concentrações familiares, parques de merendas, turismo, etc.), mas os cuidados têm de ser reforçados. São muitos incêndios, excessivos, em dias críticos. Se compararmos com Espanha, que é muito maior, temos muitos mais num único dia do que os nossos vizinhos!”, sublinha o doutorando em Gestão Sustentável da Terra e do Território na Universidade de Santiago de Compostela.
“Estamos a navegar à vista sem uma carta, uma bússola, um rumo” Na ótica do especialista, o panorama negro dos últimos dias poderia ter sido evitado ou, pelo menos, não ter atingido níveis tão trágicos, se os Governos – anteriores e atual – tivessem tido a prevenção sempre em mente.
“Isto era previsível. Infelizmente, já esperava isto dadas as condições de tudo pós-2017. Estamos com falta de trabalho feito no terreno. É notória uma melhoria na comunicação, conseguimos ver a intervenção de determinados organismos com competências de gestão, como o IPMA, muito mais proativos. E, efetivamente, há resultados”, realça, reconhecendo que as mensagens transmitidas chegam cada vez com mais eficácia à população.
Contudo, existem alguns aspectos que necessitam de desmistificação e esclarecimento para que os cidadãos não tenham uma perceção errada. A título de exemplo, “o facto de dizerem que não há bombeiros suficientes… Há muitas ocorrências graves ao mesmo tempo. Estamos a tentar resolver numa situação de emergência aquilo que não fizemos durante estes anos todos”, diz, adiantando que “houve um esforço financeiro por parte do Governo para apoiar determinadas iniciativas, mas dados os critérios estabelecidos, ficou tudo muito concentrado nas regiões que ficaram afetadas em 2017”, acrescentando que “também há a questão da transição entre dois sistemas e o planeamento é o antigo”.
“Antes tínhamos os três pilares – defesa da floresta, emergência e fiscalização e vigilância –, mas hoje não”, afirma, referindo-se ao Programa Nacional de Ação, aprovado em Conselho de Ministros no dia 28 de maio de 2021 e que constitui “um instrumento de gestão para os líderes das entidades públicas (AGIF, ANEPC, ICNF, GNR, FAP, IPMA) estabelecerem um diálogo informado entre as suas equipas e com a sociedade e os decisores políticos”, como é possível ler no site oficial da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF).
“Hoje temos várias entidades, fora as locais, e isto complica-se. Os incêndios foram em 2017, em 2018 devíamos ter o programa nacional publicado e isto só aconteceu em 2021! E continuamos sem ter os planos. Estamos a navegar à vista sem uma carta, uma bússola, um rumo”, declara, explicando que necessitamos “de um planeamento nacional, regional, subregional e, finalmente, os de execução municipal”, rematando que “apenas um Programa é débil para abarcar tudo”.
“Os municípios, as entidades executoras, são aqueles que vão sofrer mais. O grande pecado deste novo sistema é a falta do diagnóstico daquilo que aconteceu no passado e falta de pensamento no futuro. Isto está a ter consequências e vai haver mais”, avisa o especialista, alertando para as causas distintas dos incêndios.
“Quando falamos da causa, temos de ter algum cuidado: há pouco ouvíamos que a maior parte era por negligência, mas ainda não estão atribuídas nem investigadas as causas. 49% das ocorrências têm causas por atribuir, não podemos dizer que é ou deixa de ser intencional”, aponta, sendo importante mencionar que, esta quinta-feira, António Costa disse que os agentes da Polícia Judiciária (PJ) e a Guarda Nacional República (GNR) desenvolveram as suas capacidades técnicas e, deste modo, existem mais detenções e condenações em tribunal de incendiários.
No final de 2017, foi criado um mecanismo na lei “que está agora a ser utilizado e que passa pela possibilidade de os tribunais aplicarem medidas de detenção domiciliária preventiva a pessoas que foram condenadas de forma recorrente por incêndio, ou que se sabe que têm uma propensão”, frisou o primeiro-ministro, sendo que, atualmente, 12 incendiários – que estavam em liberdade condicional – foram colocados em prisão domiciliária.
“O estudo da causalidade é muito importante para direcionarmos as campanhas e a fiscalização. O novo decreto-lei revogou aquele que limitava e condicionava o uso do solo florestal”, observa Emanuel Oliveira. “O anterior dizia que uma área ardida não podia sofrer alterações durante 10 anos, mas agora já não há esse condicionamento. Se algum mal-intencionado colocar fogo para construir um projeto qualquer – campo de golfe, quinta, turismo, etc. –, pode fazê-lo porque não há nada que o condicione”.