Não é segredo nenhum que, ao longo do séc. XX, mas também mais recentemente, algures entre o Pentágono e Langley, equipas de agentes secretos americanos planearam como derrubar regimes adversários. São maquinações que serviram tantas vezes como enredo de filmes, acabando por vezes confirmadas décadas depois, através da revelação de documentos classificados, que contam histórias ainda mais incríveis do que Hollywood poderia imaginar. Mas raramente ouvimos falar disso em público, como fez esta semana John Bolton, antigo conselheiro de Segurança de Donald Trump, com quem entraria em rota de colisão.
A boca de Bolton fugiu-lhe para a verdade, como diz o ditado popular, quando explicava que discordava que a tomada do Congresso, durante a insurreição de 6 de janeiro, se tratasse de um golpe Estado cuidadosamente planeado por Trump. “Uma pessoa não tem de ser brilhante para tentar dar um golpe”, comentou o jornalista da CNN que entrevistava o antigo conselheiro de Segurança americano. Este pareceu ficar com o seu orgulho profissional ferido. “Discordo disso, enquanto alguém que ajudou a planear golpes de Estado”, reagiu Bolton. “Não aqui, percebe, noutros lados”, ressalvou. “Dá imenso trabalho”.
Claro que ninguém precisa de dar lições a Bolton sobre como derrubar um regime estrangeiro. Trump chamou-o para a sua Administração pela experiência que trazia, como veterano das Administrações de Ronal Reagan, bem como de George H. W. Bush e do seu filho. Quando Bolton chegou a Washington, em 1985, ainda pôde aprender com protagonistas daquela que talvez tenha sido a época de ouro dos golpes de Estado da CIA, nas décadas 50, 60 e 70, pico da Guerra Fria. Langley já admitiu ter apoiado sete golpes de Estado – no Irão (1953), Guatemala (1954), Congo (1960), República Dominicana (1961), Vietname do Sul (1963), Brasil (1964) – nesse período. E não há dúvidas que, nessa altura e desde então, muitos outros terão ocorrido.
Como seria de esperar, rapidamente houve especulação sobre os golpes de Estado que Bolton poderia ter ajudado a preparar. Dos exemplos mais recentes talvez sejam as desastrosa tentativas de lançar golpes na Venezuela, contra o regime de Nicolás Maduro.
O primeiro foi em abril de 2019, com Caracas em convulsão após Juan Guaidó se autoproclamar Presidente. Centenas de tropas saíram à rua, tendo apoiantes de Guaidó tentado tomar o aeroporto militar de La Carlota, uma peça crucial das defesas da capital. Washington oferecera a sua proteção a figuras de peso do regime, incluindo o chefe das secretas, Christopher Figuera, bem como ao ministro da Defesa Vladimir Padrino, contou Bolton à Axios, que estava seguro de que aquele “era o dia”. Contudo, após sugestões de que Maduro já tinha um avião à espera, para fugir para Cuba, tudo começou a correr mal quando Padrino mudou de ideias – ainda hoje se mantém como ministro da Defesa – e o Presidente reapareceu, dando ordens às tropas a partir do forte Tiuna, protegido por militares cubanos e russos.
Sem o apoio dos militares venezuelanos, o golpe de Estado falhara. “As Forças Armadas são um fator fundamental em qualquer transição”, admitira Guaidó, uns meses depois do golpe de abril. “E é fundamental trazê-las para o nosso lado, e que não se calem, apesar do medo”, salientou o autoproclamado Presidente. “Podemos ver isso na Bolívia, são sempre um fator de pressão”, continuou, em entrevista ao SOL, na mesma semana em que o então Presidente boliviano, Evo Morales, foi derrubado – um processo apontado por muitos como outro golpe apoiado por Washington.
Já a segunda tentativa de golpes de Estado na Venezuela, em maio de 2020, conseguiu ser ainda mais atabalhoada que a primeira, sendo um daqueles casos em que a realidade ultrapassa a fição. Uma empresa de mercenários, a Silvercorp USA, foi contactada por dirigentes próximos de Guaidó – incluindo Juan José Rendón, um operador político venezuelano, acusado pelo El Espectador e pelo Semana de aceitar 12 milhões de dólares vindos de cartéis, quando geria uma campanha presidencial colombiana em 2014, dois anos após ser acusado de manipular as eleições mexicanas, dando a vitória a Enrique Peña Nieto, avançou a Bloomberg – e sonhou que conseguia infiltrar comandos na Venezuela. O plano era tomar o aeroporto internacional Simón Bolívar, perto de Caracas, raptar Maduro e ficar com a recompensa de 15 milhões de dólares oferecida por Washington. A ideia era tão louca quanto parecia e correu tão mal como seria de esperar, tendo os comandos da Silver Corps USA sido rapidamente apanhados pelos militares venezuelanos.
À semelhança de tantas outras tentativas de golpe na América Latina, o esquema tinha como centro nervoso Miami, na Florida. Esta cidade é um “viveiro” de conspiradores, escreveu o Guardian. Afinal, possuí “várias comunidades exiladas, sonhado e intrigando quanto ao seu regresso ao poder nos seus países natais, com um pronto fornecimento de veteranos militares com experiência na América Latina e nas Caraíbas, do Comando Sul dos EUA, sediado em Doral, e uma longa história de uma política local corrupta e etnicamente motivada”. Algo que Washington sempre aproveitou, usando-o em sucessivos golpes na América Latina, como a tentativa de invadir Cuba pela Baía dos Porcos, em 1961. E seguindo a Doutrina Monroe, que implicava tratar os seus vizinhos a sul como se não fossem mais que uma espécie de quintal nas traseiras dos EUA.
Naturalmente que Bolton não mostrou grande vontade de ficar com os créditos de nenhuma das falhadas tentativas de golpe de Estado na Venezuela. “Não tivemos muito a ver com isso”, respondeu o antigo conselheiro de Segurança, quando o seu entrevistador da CNN insistiu em saber quais golpes este apoiara.”Mas eu vi o que custou para uma oposição tentar derrubar um Presidente ilegalmente eleito e eles falharam”, salientou Bolton. “A noção de que Donald Trump tem metade da competência da oposição venezuelana é uma piada”.
Suspeitas e mistério Claro que Bolton, quando falava dos golpes de Estado que planeou, poderia estar a falar de outros casos que não a Venezuela. Há muitos potenciais suspeitos – sempre que algo de estranho acontece em países em desenvolvimento com laços com os EUA, é recorrente virem ao de cima alegações, fundamentadas ou não, do envolvimento de Langley. Como se viu no assassinato do Presidente haitiano, Jovenel Moïse, numa conspiração orquestrada em Miami, ou na votação parlamentar que derrubou o Presidente paquistanês, Imran Khan, cuja Administração se afastara de Washington, aproximando-se de Pequim e Moscovo.
Esses dois incidentes já não foram durante o mandato de Trump, mas sim de Joe Biden. Mas isso não invalida que Washington possa ter tido algo a ver com o assunto, dado que Presidentes democratas também sempre mostraram apetência para infiltrar governos estrangeiros. Mesmo durante o mandato de Bill Clinton, por exemplo, cientistas políticos indicavam que os EUA eram vistos em boa parte do mundo como o “principal Estado fora-da-lei”, lembrou Noam Chomsky, num artigo de opinião no Economist.
As declarações de Bolton, perante as câmaras, quase que poderiam ter sido escritas por Vijay Prashad, autor do livro Washington Bullets: A History of the CIA, Coups, and Assassinations (Monthly Review Press, 2020). “Apesar de se aplaudir a si mesmo como um oásis de democracia, os Estados Unidos, na realidade, são uma superpotência dedicada a infiltrar governos estrangeiros”, frisou Prashad. O seu trabalho traça um fio condutor que começa com o derrube do primeiro-ministro iraniano Mohammad Mosaddegh, democraticamente eleito mas odiado por Washington e Londres, dado ter tentado nacionalizar o petróleo do Irão – o resultado foi uma ditadura do Xá Mohammad Reza Pahlavi e, indiretamente poderia argumentar-se, o atual regime islâmico iraniano. Terminando o livro com o derrube de Evo Morales, já com Bolton na Casa Branca.
Se os comentários do antigo conselheiro de Segurança americano não fizeram grandes manchetes na imprensa ocidental, já adversários de Washington não deixaram de reparar nelas. O caso “revelou o nível da interferência dos EUA nos assuntos domésticos de outros países”, escreveu a Xinhua, ecoando uma das queixas mais recorrentes do autoritário regime de Pequim. “Nós temos vistos muitas situações deste tipo ao longo dos anos. E recentemente continuamos a vê-las na América Latina”, concordou Décio Machado, uma analista político residente no Equador, à agência noticiosa chinesa. Lembrando como a extensão do poderio da espionagem americana já fora revelado pelas fugas de informação obtidas pela WikiLeaks, em 2010.