Já acontecia com as chamadas vagas carenciadas, que colocam médicos em zonas mais desfalcadas com um bónus salarial de 40% ao longo de três anos. Já acontecia com as diferenças de remuneração entre quem está em trabalhar em Unidade Saúde Familiar do tipo B e do tipo A. Agora, com um novo suplemento remuneratório de 60% para novos médicos de família que ocupem vagas em unidades com mais utentes sem médico, a disparidade salarial atinge situações ainda mais insólitas, que em alguns casos fará com que recém-especialistas entrem a ganhar o dobro de que quem está no SNS há 10 ou 20 anos, em algum caso mais do que os ‘chefes’, sendo que este novo bónus pode ainda ser acumulado com o dos 40% atribuído para algumas das novas vagas abertas no último concurso, que, além de ter ficado com mais de uma centena de vagas por preencher, agrava a disparidade salarial entre colegas, com os mais novos a ganhar mais do que os mais antigos. Para os médicos ouvidos pelo Nascer do SOL, só pode haver um desfecho para esta estratégia de atração de médicos para o SNS: «Vai correr mal».
É o sentimento de Rita Molinar, médica de família desde 2014 em Lisboa. Hoje, os médicos de família saem à rua num protesto convocado pela Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar e Rita Molinar conta que adiou o início das férias para estar presente, mas, se vê colegas igualmente mobilizados, admite que nem todos o estão, com o desânimo a falar mais alto e a ser agravado por esta última decisão que começou a ser constatada pelos médicos com um esclarecimento publicado pela Administração Central do Sistema de Saúde do que seria o novo incentivo remuneratório anunciado pelo Governo, uma nota online que explica quem está abrangido pelo novo regime remuneratório e que este pode ser ainda cumulável com o das vagas carenciadas.
«Significa que um interno que há três meses era meu subordinado vem para um lugar no gabinete ao lado a receber o dobro do que eu vou continuar a receber», diz a médica. «Esta situação cria uma instabilidade nas equipas e uma desmotivação enorme. Os que cá estão a aguentar o barco há não sei quantos anos só pensam: o melhor se calhar é desvincular-me e esperar por outro concurso desses, porque estar a receber metade do que estão a oferecer agora para fazer o mesmo trabalho não faz sentido».
No caso deste concurso, só podiam concorrer médicos que terminaram a especialidade neste ano, mas em anteriores já foram abertos com menos limites a qualquer médico sem vínculo ao SNS, o que acaba por gerar uma instabilidade nas equipas que, em vez de contribuir para resolver a falta de médicos de família, a pode perpetuar.
Não é o único problema apontado ao Nascer do SOL por médicos de família: as vagas com bónus salarial – no caso dos 40% 1.111,78 euros brutos e no caso dos 60% 1857 euros brutos, que podem ser acumulados em alguns locais – foram abertas em unidades de cuidados de saúde personalizados, os centros de saúde, onde se concentram a maioria dos utentes sem médico de família, o que potencialmente leva a que haja menos interessados em preencher lugares nas USF. Onde ficam mais pessoas sem médico de família, algumas devolvidas aos centros de saúde de origem, ‘desorganizando’, antecipa-se, o que vinha sendo uma reforma de mais de uma década.
Rita Molinar também não vê como é que a medida pode ser uma solução para lá do imediato: «As assimetrias salariais são completamente desmotivantes para quem está e para quem quer fazer carreira no SNS. A quem cá está, não oferecem nada para ficar. Parece que é um incentivo a desvincular quem está na esperança de conseguir um contrato melhor, o que em termos de desenvolvimento das equipas e do trabalho não faz sentido nenhum. E mesmo assim o ambiente está tão mau que muitos destes lugares não foram escolhidos», diz a médica, chamando a atenção que mesmo lugares que têm sido ocupados passado alguns meses acabam por ficar desertos, com os médicos a sair. «Ninguém aguenta o trabalho de suportar listas de 1900 utentes e os utentes sem médico». E, a médio prazo, vêm as perguntas: «Mesmo que alguém aceite vir a ganhar esta remuneração adicional, ao fim de três anos passa a ganhar metade?», questiona, lembrando que a progressão tem sido inexistente, como é o seu caso, a ganhar o mesmo desde que começou a trabalhar como médica de família há oito anos – no início de carreira, o vencimento dos médicos é de cerca de 1800 euros líquidos.
Um médico que entre com o bónus de 60%, 1667,56 euros brutos adicionais ao longo de três anos, pode começar a carreira a ganhar 2700 euros líquidos. No caso em que acumule o bónus de 40%, são mais de 3 mil euros. E nesse caso um vencimento, ainda que temporário, superior ao de médicos que até já progrediram na carreira, já que o vencimento de um assistente graduado começa nos 3.248,27 euros brutos e a soma dos dois suplementos perfaz 5747 euros brutos.
«Com esta alteração, passamos a ter colegas que até dentro do mesmo ACES, em unidades contíguas e às vezes até dentro da mesma unidade, recebem o salário base e mais nada; outros que estão a receber o base mais 40% porque entraram numa vaga carenciada e estão assim seis anos e outros que vão entrar a receber o base mais 40%, mais 60% porque apanham uma vaga carenciada e este novo incentivo durante três anos», disse em entrevista ao i esta semana Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, que convocou o protesto contra a nova regra definida pelo Governo que este ano, nos casos em que não haja médicos especialistas em medicina geral e familiar, permite que médicos sem especialidade passem a ter listas de utentes como médicos de família. O agravamento da disparidade salarial é visto com preocupação, com Nuno Jacinto a admitir o risco de debandada dos centros de saúde. «Depende dos impostos, mas podemos ter uns a ganhar 1800, outros 2500, outros 3100, a fazer o mesmo. (…) É óbvio que o risco é esse. A lógica não pode ser esta e já se provou que os incentivos por si só não funcionam, se não as vagas eram ocupadas. Tem de haver uma mudança de valorização daquilo que é o trabalho médico de base, que é o que não vemos».
Às preocupações com os médicos indiferenciados a ocuparem o lugar de médicos de família, a ministra da Saúde respondeu esta semana no Parlamento que esta solução pretende responder a casos de doença aguda e não contar para ficar resolvida a falta de médicos de família num determinado lugar. «Não estamos a propor que estas pessoas sejam médicos de família. Mesmo que estas pessoas aceitem esse contrato, elas não serão médicos de família, não se transformam médicos não especialistas em médicos de família», afirmou Marta Temido. Em relação às diferenças salariais, e questionado pelo Nascer do SOL, o Ministério não se pronunciou.
A associação teme no entanto um efeito em catadupa que acabe num ‘retrocesso’: desmotivação por um lado de quem está e a desmotivação que pode criar em quem pensa em ser médico de família. Isto porque quem está vê disparidades salariais e ausência de progressão. E quem possa estar a tirar o curso de Medicina ou a iniciar o internato, é confrontado com um novo regime em que um médico sem especialidade pode ser contratado para um centro de saúde ficando com uma lista de utentes e a ganhar um bonús salarial de 30% face ao que receberia como interno – o novo enquadramento previsto na Lei do Orçamento do Estado. «Portanto recebem mais sendo médicos não especialistas do que sendo internos, sem terem de se sujeitar a provas de avaliação e a todo o processo formativo», nota Nuno Jacinto.
O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos Jorge Roque da Cunha, confrontado pelo Nascer do SOL com os novos suplementos remunetários, afirma que vêm aumentar a «injustiça salarial e a revolta» dos médicos, considerando-o «ainda mais incompreensível numa altura em que o Ministério tem recusado incluir a revisão das grelhas salariais nas negociações».
Essa tem sido a frente do lado dos sindicatos médicos, que exigem a inclusão desse ponto e da progressão da carreira nas negociações com a tutela, que pretende regulamentar questões como a valorização do trabalho nas urgências e a dedicação plena.
Mais de 100 novos médicos de família não ficaram no SNS
Esta semana ficou a saber-se que dos 379 candidatos para 432 vagas abertas nos centros de saúde e unidades de saúde familiar para novos médicos de família recém-especialistas, só 272 terão ficado a trabalhar no SNS.
Os resultados do concurso ainda não foram publicados, não sendo ainda claro que vagas foram ocupadas. Segundo o SIM, metade das vagas em Lisboa, que eram 2011, ficaram desertas. As vagas abrangidas pelo novo suplemento remuneratório de 60% abrangiam os agrupamentos de centros de saúde com uma cobertura de médico de família abaixo da médica, a maioria em Lisboa e Vale do Tejo. Já as vagas carenciadas abertas este ano para Medicina Geral e Familiar eram 67, espalhadas por todo o país, e cerca de duas dezenas em Lisboa.