O capitão piloto-aviador que perdeu a vida em Vila Nova de Foz Côa, no distrito da Guarda, enquanto pilotava um avião no contexto do combate a incêndios que fustigavam aquela zona, tinha um processo aberto contra a TAP. André ‘Banzai’ Serra, de 38 anos, tinha realizado o programa de formação e obteve aproveitamento, sendo que estava para assinar o contrato de trabalho, em março de 2020, com a companhia aérea nacional.
No entanto, devido ao surgimento do novo coronavírus, a TAP terá recusado celebrar o contrato com o profissional que conta com 12 anos de experiência, 10 àquela época. O mesmo terá acontecido com mais cerca de 20 pilotos que se encontravam na mesma circunstância. Devido a esta reviravolta inesperada, André – cuja última despedida ocorreu na igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Benfica, na capela da Força Aérea, este domingo – teve de tomar uma decisão: mudou de área laboral e chegou a ser motorista de TVDE e assistente de veterinária para sustentar a família.
“A Ré celebrou individualmente com cada um dos Autores, no final de 2019, um contrato denominado Acordo de Formação com vista a habilitá-los a desempenhar as funções de Oficial Piloto de Linha Aérea na TAP, sendo atribuída mensalmente uma Bolsa de Formação equivalente a dois salários mínimos. Acontece que, em março de 2020, com o início da Pandemia Covid-19, e invocando esse motivo, tal contrato foi suspenso pela Ré por tempo indeterminado”, lê-se na ação interposta por André e mais três pilotos contra a TAP.
No resto do documento, é explicitado que “deixando a Ré de efetuar o pagamento da retribuição acordada aos Autores, denominada de ‘bolsa’ sem que alguma vez tenha formalizado” junto dos profissionais “a cessação de tal contrato”, estes ficaram “numa situação de enorme incerteza quanto ao futuro, para além de ficarem sem fonte de rendimento”.
“Não tendo sido garantido pela TAP qualquer tipo de apoio aos formandos equivalente ao que havia feito para os seus restantes trabalhadores, numa clara atitude de discriminação, desinteresse e desresponsabilização quanto aos mesmos”, é avançado, sendo salientado que “a maioria dos Autores, previamente à sua entrada na TAP, eram pilotos oficiais dos quadros permanentes da Força Aérea Portuguesa (FAP) das Forças Armadas Portuguesas, daí se encontrarem habilitados a concorrer àquela posição na TAP”.
É ainda adiantado que a TAP levou os pilotos a “‘queimar as pontes’ com o seu passado” e que “não obstante terem uma carreira estável e garantida para toda a vida, estes militares com total boa-fé, acreditaram na proposta da Ré e deram um ‘leap of faith’ nas suas carreiras em busca de melhores oportunidades, tais como melhores salários e qualidade de vida”.
Para conseguir suportar os custos do curso de formação, o capitão piloto-aviador, que pilotou sobretudo aeronaves C-295, e era especializado em missões de busca e salvamento, pediu 30 mil euros emprestados a familiares e amigos – o montante necessário para pagar a formação, assim que fosse qualificado como oficial piloto da TAP, tendo, posteriormente, solicitado um crédito bancário no valor de 35 mil euros para saldar as dívidas.
Tais factos têm uma relevância extrema porque, há dois anos, com duas filhas – uma de 8 meses e outra de 2 anos -, e com a companheira de licença de maternidade, para além dos empregos pelos quais passou, André teve de “vender bens pessoais, como por exemplo o carro”, sendo que “com tudo isto viu completamente frustradas as suas expectativas de uma carreira a longo prazo, criando-lhe revolta e tristeza a atitude de indiferença dos Recursos Humanos da TAP perante a sua situação”, algo que conduziu a que ficasse “abalado psicologicamente”, tendo dificuldades para dormir e pouca motivação para fazer exercício físico, “algo que tanto adorava”, até porque “se encontrava no início da construção da sua habitação pessoal, ficando de repente sem capacidade de a continuar”.
TAP contesta e realça impacto da pandemia O processo judicial está pendente, e ao qual o i teve acesso, comprova igualmente esta situação, mas conta com o posicionamento da empresa acusada de ter desrespeitado o jovem e os restantes colegas.
Assim, começa por explicitar que “deixou de voar para qualquer destino e não sabia de todo qual o seu destino, qual o seu plano, quais as rotas em que se justificava voar”, justificando que atravessou “o início do período mais conturbado do ponto de vista operacional e administrativo, quanto à indefinição da situação que se vivia, com todos os seus serviços praticamente paralisados”, lembrando que “foi nessa altura que mais de 90% dos trabalhadores foram colocados na situação de lay-off ou teletrabalho”.
“A conduta dos Autores é a si e a cada um exclusivamente imputável, não podendo a aqui Ré ser legalmente responsável (nem para tal existe enquadramento legal) pela opção que conscientemente tomaram de submeter a sua Candidatura, que dependia necessariamente da sua disponibilidade para assistir assiduamente aos conteúdos ministrados, se encontrando esse acto no exclusivo livre arbítrio daqueles e bem assim, qualquer consequência que daí decorra”.
“Em conclusão, não estavam então os Autores ‘aptos’ a celebrar qualquer contrato de trabalho (…) uma vez que ao abrigo do mesmo a sua qualidade era de ‘formandos’ e não de ‘trabalhadores’” ou “(…) os Autores não podiam razoavelmente crer que seriam contratados pela Ré, existindo sim, sempre um ‘risco percetível’, sem prejuízo da sua anterior formação e experiência”, voltou a frisar que “adicionalmente, num esforço para garantir a sua sustentatibilidade, a TAP foi forçada a recorrer à suspensão temporária do contrato de trabalho da grande maioria dos seus colaboradores”, insistindo que “(…) ninguém sabia – nem podia prever – os contornos que a pandemia provocada pela covid-19 iria provocar em todo o mundo”.
“Lamentamos muito a morte do Piloto André Serra e transmitimos à sua família os nossos sentidos pêsames e solidariedade neste momento tão difícil”, afirmou a TAP, contactada pelo i, continuando que “não comenta processos judiciais em curso mas confirma que André Serra concorreu por opção própria ao Concurso de ‘Oficiais Piloto de Aviação Comercial’”.
“Os concursos para Pilotos da TAP conferem aos candidatos o acesso a curso de formação que pode ou não ser concluído por motivos vários e findo o qual (também dependendo da obtenção de aptidão) poderão ou não ser contratados pela TAP”, disse, finalizando que “o curso frequentado pelo Piloto André Serra, bem como pelos demais pilotos, não foi concluído por razões ponderosas e legítimas correlacionadas com o contexto pandémico”.