Por Luís Paulino Pereira, médico
Tudo muda nesta vida. Citando Camões: «Muda-se o ser, muda-se a confiança/Todo o mundo é composto de mudança…». Nós todos somos testemunhas das mudanças que ocorrem na sociedade e nada podemos fazer para as evitar. Goste-se ou não se goste, as coisas vão mudando e os novos tempos trazem sempre algo de diferente à nossa vida.
Quando eu era criança e vivia com os meus pais, se algum electrodoméstico se avariava lá em casa, chamava-se o técnico – que procurava repará-lo no domicílio. Se a avaria era mais complicada, tinha de ser levado para a oficina, regressando mais tarde como novo. E durava sei lá mais quanto tempo!
Nos dias de hoje, já não é assim.
Primeiro, por que há poucos técnicos, pois o que conta agora é ter uma licenciatura. Daí as escolas técnicas terem vindo a perder terreno, abrindo caminho às universidades, que estão superlotadas.
Depois, todos o sabemos, qualquer avaria, é sinónimo de aparelho novo, visto o material ser descartável. Aliás, não é novidade para ninguém que hoje nada tem a mesma duração dos materiais produzidos antigamente, seja em que área for.
O relacionamento entre os seres humanos também mudou consideravelmente. As pessoas pareciam ser mais verdadeiras, mais sãs, mais solidárias, mais amigas. Hoje, os amigos (dignos desse nome) são cada vez menos e passaram a aparecer os ‘conhecidos’ – que, em muitos casos, se servem dos outros em função dos seus interesses e conveniências.
E quando os objetivos são atingidos, estes ‘conhecidos’ põem aqueles de parte e substituem-nos por outros – de acordo com a velha teoria ‘muito tens muito vales, nada tens nada vales’. Dito por outras palavras, também os conhecimentos se tornaram descartáveis.
Do mesmo modo, a família não foi poupada. Já lá vai o tempo em que era um verdadeiro alicerce da sociedade, que ninguém ousava pôr em causa. Fosse qual fosse o modelo familiar, a estrutura básica era intocável. Hoje são poucos os que pensam dessa forma. Se algum problema surgir num casal, por mais ligeiro que seja, ‘parte-se logo para outra’, já que tudo é descartável. Entristece-me – e já aqui o ilustrei com casos concretos da minha vida profissional – o espírito com que os jovens encaram a vida e olham para a família, retirando-lhe o valor e a força que tinha. Por isso o mundo está como está…
Vivemos, pois, na era do descartável. Até a própria vida, para muitos, parece também ser descartável. E não é um problema político da esquerda ou da direita, é uma realidade que tem a ver com novas mentalidades que estes ‘ventos de mudança’ trouxeram à sociedade. Em nome da despenalização do aborto, liberalizou-se o aborto e o mesmo está prestes a acontecer com a eutanásia, num tema que divide os portugueses, que algumas ordens profissionais (médicos, enfermeiros e advogados) não aceitam e que o nosso bastonário já esclareceu publicamente não se tratar de um ato médico.
Surpreende-me o momento escolhido para essa discussão na Assembleia da República – e como cidadão não posso aceitar que a votação de um problema tão delicado tenha ocorrido quando está em curso uma guerra na Europa de imprevisíveis consequências, quando estamos debaixo de uma pandemia que se encontra longe de estar resolvida e, acima de tudo, quando o SNS está a causar problemas graves que afetam milhares de portugueses. Inacreditável! É o Estado no seu melhor.
Quando devia investir a fundo nos Cuidados Continuados e Paliativos, ambos à espera de uma intervenção profunda, e o SNS está à beira do colapso, sem conseguir dar a resposta que os cidadãos precisam, o Governo prefere demonstrar que tem outras prioridades, contando, claro está, com a ‘conivência’ da classe médica que, a partir do momento em que tudo estiver regulamentado, passará a ser vista com outros olhos.
Nas últimas semanas, o SNS tem sido alvo das mais duras críticas, em especial pela falta de profissionais. O Governo veio a público dizer que o problema é estrutural e não apenas de aumento de salários. Olha que novidade! Quantas vezes neste espaço não denunciei a forma como se trabalhava no SNS e o desinteresse e a desmotivação que se apoderavam de quem queria apostar a sério no serviço público?
Num momento de tantas dificuldades, convém ter presente que os profissionais, tal como as grandes vedetas do futebol, já não correm por amor à camisola. A todo o momento não têm problema algum em ‘abandonar o barco’ e deixar a obra a meio, se aparecerem propostas mais aliciantes. Trabalhar para o Estado passou a ser igualmente descartável e os portugueses sabem bem o que isso custa.
Esta é a realidade. É aquilo que temos no presente. O que nos reservará o futuro?