A ‘morte’ lenta do rio mais extenso da Península Ibérica

Nalguns pontos do seu curso, o Tejo encontra-se reduzido a um “regato”. Os baixos níveis de caudal permitem atravessá-lo a pé, e a poluição preocupa os ecologistas. O que aconteceu à água e quem são os responsáveis? A seca ou os espanhóis?

Noutros tempos, a água era tão límpida e transparente que se conseguia distinguia as espécies dos peixes pela sua cor. Muitos habitantes aprendiam a nadar no rio e ainda têm memória dos momentos refrescantes passados com os amigos no verão.

No entanto, este cenário tem vindo a transformar-se drasticamente com o passar das décadas. Se antes esta era uma paisagem natural extraordinária, aos dias de hoje já lhe chamam com ironia “regato”. A falta de água coloca em causa inúmeras atividades, e há já quem fale na “morte” do Tejo. Como o semanário Nascer do SOL noticiou este sábado, em Santarém é possível atravessá-lo a pé.

Os baixos níveis de caudal que se vêm verificando agravam o problema da poluição. A não circulação (e renovação) da água leva, por sua vez, à alteração do ecossistema. E, se há quem coloque a responsabilidade nas alterações climáticas – não tem chovido o suficiente para manter os níveis de caudal “normais” –, há por outro lado quem aponte o dedo aos espanhóis. Suspeita-se que o caudal estará a ser cortado algures em Espanha, até porque, como revelou a CNN Portugal esta semana, nalgumas zonas do percurso no país vizinho, “as águas do Tejo encontram-se completamente verdes”, o que indicia a falta de circulação. Possivelmente, nem sequer o caudal mínimo ecológico está a ser respeitado.

 

espanha pode declarar situação de exceção Toda esta situação é “recorrente”, aponta Francisco Ferreira, presidente da ONG, ZERO, já que o facto de termos caudais relativamente reduzidos está relacionado com a falta de precipitação em Portugal e, acima de tudo, em Espanha. Contudo, este ano, temos visto a situação a agravar-se. “Nós temos um acordo com Espanha que, para os rios internacionais, define caudais que têm de ser respeitados pela mesma à escala semanal, trimestral e anual”, começa por explicar ao i. O problema é que, quando há situações de seca ou de cheia, Espanha pode declarar aquilo que se chama uma “situação de exceção”. E, portanto, nesse caso, esta “não tem de nos entregar os caudais que estão estipulados”. “É isso que Espanha já declarou nos casos do Douro e do Guadiana. Aparentemente, ainda não o fez no caso do Tejo”, acrescenta o responsável.

 

A maior albufeira do rio Tejo está verde O rio Tejo tem 11 barragens, mas apenas duas ficam em Portugal. As principais, naturalmente, encontram-se do lado de lá da fronteira.

A maior albufeira do rio Tejo, por exemplo, que fica em Alcântara – a cerca de 15 quilómetros da fronteira portuguesa – chegou ao verão com apenas 48% da capacidade ocupada. De acordo com a CNN Portugal, algo nunca visto. O último outono/inverno “não foi suficiente para recuperar os níveis de água do passado” – nesta altura do ano, a barragem devia ter 70% a 80% da capacidade ocupada. Com isto, agrava-se a situação da qualidade da água. Em Alcântara, neste momento, assistimos a um processo de eutrofização (que ocorre quando um corpo de água recebe uma grande quantidade de efluentes com matéria orgânica enriquecida com minerais e nutrientes que induzem o crescimento excessivo de algas e plantas aquáticas). Ou seja, o rio, ao invés de correr e manter o seu aspeto normal, transformou-se num grande “manto verde”, que nem permite ver o fundo. O que é sinal de uma má qualidade da água, com os característicos maus cheiros associados.

“A convenção de Albufeira de 1998, entre Portugal e Espanha, só se dedicou à quantidade da água, não à qualidade, e mesmo em relação à quantidade, não foram definidos caudais ecológicos”, alerta o Presidente da ZERO. Por isso, temos um Tejo “completamente verde”, quer pela situação da falta de caudal, pelo facto das águas virem de Espanha carregadas de muito nutrientes – principalmente de azoto –, quer pela situação do calor.

“Como consequências ecológicas temos um boom de algas que, por sua vez, se traduzem em consequências que podem ser extremamente dramáticas”, lamenta, explicando que pode não ser agora, mas “podemos atingir níveis muito baixos de oxigénio que, ao contrário de outros gases, quanto maior for a temperatura da água, menos é a sua solubilidade”. E continua: “O que é que este ano há de relevante? É o estarmos realmente a ter impactos mais cedo do que o habitual e, obviamente, a concentração de poluentes que, principalmente devido à agricultura que se pratica em Espanha, acaba por ser muito mais elevada”, frisa Francisco Ferreira.

 

O Castelo de Almourol

Mas não é preciso ir tão longe. A quase 38 quilómetros de Santarém, erguido num afloramento de granito, encontra-se o Castelo de Almourol, onde diariamente se realizam tanto visitas ao monumento nacional -–que tem acesso de barco – como passeios no rio. Paulo Lopes, de 51 anos, sócio gerente da Tritejo, empresa responsável pelos passeios ao longo do Tejo, frisa que há algum tempo que existe uma grande preocupação quer pelos baixos níveis de caudal do rio – que obrigam à mudança de travessias – quer pela poluição. A cada década, explica ao i o barqueiro, o rio perde cerca de 60 a 80 centímetros de água, condicionando os acessos das entradas e saídas dos barcos que não conseguem navegar nem acima do Castelo de Almourol, nem abaixo da Vila Nova da Barquinha.

Outra das grandes preocupações é, tal como dizia Francisco Ferreira, “a capacidade de transformação do próprio ecossistema”. No local, já apareceram as algas, “vegetação que não era característica do fundo do rio”. Por exemplo, no início deste ano, apareceu uma praga de ervas que infestou o rio e colocou nos barqueiros “uma grande dificuldade de navegação”. “Esses ‘juncos’ evoluíram de uma forma assustadora e enrolavam-se nas hélices”, conta Paulo Lopes, revelando que por conta disso, os barqueiros tiveram “graves problemas nos motores”. O responsável da Tritejo faz também questão de sublinhar que, no início do ano de 2022, “assistimos a um assalto abismal relativamente a tudo aquilo que são recursos, não só do Tejo como também do rio Zêzere, que em janeiro e fevereiro também encontrou caudais que nunca tinham sido vistos”.

“Concertação não existe” A verdade é que, afirma Francisco Ferreira, o rio Tejo tem uma situação muito especial no que respeita ao licenciamento de algumas indústrias. “Nomeadamente depois daquela situação complicada que se verificou entre Vila Velha de Ródão e Abrantes, em que havia uma acumulação grande de lamas e os níveis de oxigénio e carborgânico eram muito elevados. Nessa altura, as licenças ambientais de várias indústrias foram todas remodeladas”, destaca o responsável, notando que este é o único caso do país em que, de acordo com o caudal disponível no rio, a indústria é obrigada a parâmetros diferentes e tem inclusive limitações à produção.

O responsável revela que estão a ser realizados planos de gestão de região hidrográfica, que vão estar em consulta pública, que “serão elementos essenciais para uma melhor gestão” e que vão “contemplar a questão dos caudais ecológicos”. “Mas por agora não há. Portanto essa concertação entre Portugal e Espanha, não existe”, remata.