Os desafios online de cariz suicida não são novidade. Desde o “Desafio da Baleia Azul”, passando pelo “Momo”, “Homem Pateta”, “Mel Congelado” ou o “Íman”, todos têm gerado sequelas físicas e psicológicas em crianças e adolescentes nos mais variados países. No entanto, as consequências podem ser ainda mais graves e é exatamente este o cenário em que Archie Battersbee – promissor praticante de kickboxing –, de apenas 12 anos, se encontra.
Depois de ter amarrado o pescoço com uma ligadura e asfixiado até desmaiar, no âmbito do “Blackout Challenge”, cujo objetivo é que os jogadores apertem o pescoço até ficarem inconscientes devido à falta de oxigénio, o menino foi encontrado pela mãe. Desde aí, Hollie Dance, juntamente com o pai da criança, Paul Battersbee, e outros familiares e amigos da família, têm lutado para que a vida de Archie seja preservada ao máximo.
No entanto, após vários requerimentos e deliberações, esta segunda-feira, foi decidido que os médicos podem legalmente parar de fornecer tratamento de suporte de vida a Archie, que está em coma há três meses. A criança foi diagnosticada com “morte cerebral” por médicos do Royal London Hospital em Whitechapel, no leste de Londres, que recomendaram que o seu suporte de vida fosse desligado, assim como o ventilador que permitia que respirasse. Os profissionais de saúde consideram que só está “vivo” devido a “meios artificiais”.
Ainda assim, foi permitido um atraso de 48 horas no término do tratamento para que a família possa apelar ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. “Tudo aquilo que pedimos desde o início é que Archie tenha mais tempo e que os seus desejos e os nossos sejam respeitados. Enquanto Archie estiver vivo, eu nunca vou desistir dele, ele é demasiado bom para que eu o faça”, explica Hollie Dance ao i.
“Quando ele morrer, acreditamos que deve ser do modo que Deus quiser e também no tempo de Deus. Qual é a pressa? Por que o hospital e os tribunais estão tão interessados em fazer isso o mais rápido possível?”, questiona a mulher de 46 anos. “Não acredito que haja algo ‘dignificado’ em planear a morte de Archie. Para mim, este seria o resultado mais traumático”.
“Os pais precisam de apoio, não de pressão. É exaustivo passar por aquilo que passamos. Não deveríamos ter de lutar interminavelmente contra o hospital nos tribunais pelo que acreditamos ser o certo para Archie”, avança. “Os principais juízes disseram-nos, no entanto, que esta é a lei: se assim for, a lei deve mudar”, declara, acrescentando que “a família de Charlie Gard está a tentar fazer uma mudança na lei dos cuidados hospitalares há cinco anos”, referindo-se ao bebé que nasceu em agosto de 2016, filho de Chris Gard e Connie Yates.
O pequeno Charlie foi diagnosticado aos dois meses de idade com uma rara doença genética, a Síndrome de Depleção Mitocondrial, enfermidade degenerativa que provoca a debilidade motora, perda dos sentidos e danos cerebrais, tendo estado internado no Great Ormond Street Hospital, em Londres. O fim dos cuidados paliativos que recebia foi decretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e concretizado quando o menino tinha 11 meses e 24 dias, a 28 de julho de 2017.
“Também quero continuar a aumentar a consciencialização sobre esses desafios suicidas online. Podemos proteger os nossos filhos 24 horas por dia, 7 dias por semana, mas a natureza desses desafios significa que podem acabar por magoar-se em poucos minutos. Peço aos pais que conversem com os seus filhos, agora, antes que seja tarde demais”, alerta Hollie Dance, destacando que o filho tem mostrado sinais de progressão, como o aumento do peso em 400g. “Estamos determinados a apresentá-los como evidência para levar este desafio legal adiante”, revela.
“Continuaremos a lutar pelo Archie e não desistiremos”, garante. Esta perspetiva é sustentada por Andrea Williams, chefe-executiva do Christian Legal Centre, que, também em declarações ao i, deixou claro que “os pais de Archie não são irrealistas”, considerando que “foram forçados a uma luta legal implacável porque querem que o seu filho gravemente doente tenha mais tempo e todas as hipóteses de recuperação, não importa quão pequenas sejam essas hipóteses”.
“Não há nada de ‘dignificado’ numa morte coreografada e planeada num momento específico, removendo o suporte de vida a uma criança gravemente doente contra a vontade dos seus pais”, salienta, realçando que “nenhuma família deveria ter que aguentar intermináveis audiências judiciais sobre os cuidados hospitalares dos filhos doentes”. “Os pais devem ter mais voz na forma como os seus filhos são tratados. As famílias não deveriam ter de discutir com os hospitais sobre o que é certo para o seu próprio filho”, frisa, lembrando que Paul, pai de Archie, teve de ser transportado de emergência para uma instituição hospitalar por ter sofrido um ataque cardíaco ontem.
“Após outra decisão dececionante no Tribunal, incentivamos os membros do Parlamento e a população, em geral, a envolverem-se e apoiarem a ‘Lei de Charlie’, sendo que rezamos para impedir que mais famílias tenham que passar por aquilo que a família de Archie tem passado. Continuamos ao lado da família dele”, assegura a representante da organização legal que foi criada em dezembro de 2007 para fornecer apoio jurídico pro bono a cristãos no Reino Unido que acreditam ter sofrido discriminação por causa da sua fé.
ímanes fatais Em novembro do ano passado, a revista Luz noticiava o impacto do “Desafio do Íman”, que consiste em incentivar as crianças e os jovens a engolir uns ímanes pequenos que se assemelham a piercings. Os primeiros relatos da existência do desafio remontavam a julho, mas as autoridades ainda não tinham conseguido comprová-lo. No dia 17 de setembro, a BBC noticiou que Jack Mason, de Stirling (na Escócia), teve de ser submetido a uma cirurgia para remover o apêndice, o intestino delgado e 30 cm do intestino grosso depois de engolir vários ímanes minúsculos. A mãe do menino de 9 anos, Carolann McGeoch, quer alertar os pais sobre os perigos potenciais. Por isso, em declarações à Luz, explicou que os pais devem “colocar estes ímanes diretamente no lixo”, pois apesar de ter tido alta, o seu filho iniciou uma longa recuperação.
Jack foi levado para o hospital, no dia 7 de setembro, sofrendo de dores abdominais e vómitos. Após a realização de ecografias, a equipa médica rapidamente o transportou de ambulância para o Royal Hospital for Children, em Glasgow, onde os raios-x mostraram que algo estava a bloquear o intestino de Jack. Os profissionais de saúde descobriram que um conjunto de pequenos ímanes havia sido engolido por Jack e a criança acabou por confessar que os havia ingerido.
Os médicos explicaram a Carolann que Jack precisaria de uma cirurgia para remover os ímanes e qualquer tecido danificado. “Foi-me explicado que os danos que estes ímanes podem causar podem ser tão extremos que ele não conseguiria sobreviver», elucidou. “Mesmo em lágrimas, assinei a minha permissão para que a operação acontecesse”, tendo compreendido que “tudo poderia acontecer”. Volvidas quatro horas do procedimento cirúrgico, Jack já estava melhor e regressou a casa dali a oito dias.
Embora o menino não tivesse uma conta no TikTok, conseguiu ver os vídeos partilhados na plataforma. O mesmo foi verificado com uma menina de seis anos residente em Lewes, no condado de_Sussex, em Inglaterra. De acordo com o The Mirror, a criança estava a brincar com ímanes na escola antes de levá-los para casa para fazer joias para uma boneca. Ao longo de vários dias, ela engoliu 23 dos objetos mencionados e rasgou os intestinos. O cirurgião que realizou a operação de emergência explicou que os ímanes eram “potencialmente fatais”.
A mãe da menina, Tanith, avançou que encontrou mais ímanes no quarto da menina. A filha disse-lhe que “sabiam bem” quando os colocava na boca. Estes eram tão fortes que se prenderam aos intestinos da menina, que começou a ter dores de estômago a 12 de setembro, estando a vomitar há dois dias quando foi levada ao médico. Como não melhorou, os pais decidiram que devia ser acompanhada no Royal Alexandra Children’s Hospital, onde foi diagnosticada com apendicite. Por todos estes motivos, os médicos estão a ponderar a hipótese de criar uma Ostomia de Eliminação Intestinal na criança, ou seja, a abertura feita na parede abdominal com o objetivo de eliminar as fezes.
do mel congelado à extorsão sexual Há exatamente um ano, no verão do ano passado, o_“Desafio do Mel Congelado” dominava as redes sociais sendo que, à época, constituía uma imitação de Dave Ramirez, um utilizador da plataforma que decidiu comer mel congelado. Como foi noticiado pelo i, no vídeo que originou este desafio, veiculado a 9 de julho de 2021, era possível ver o jovem a apertar um frasco com as duas mãos e a comer um grande pedaço mais ‘sólido’ que o mel regular. Depois, surgiram variações como comer mel congelado decorado com rebuçados, com molho sriracha ou com chá.
Em novembro de 2020, o i explorava os meandros do_“Desafio do Homem Pateta” ou Jonathan Galindo, nome do então novo desafio suicida online que surgira no outono de 2019, época em que foi criada a primeira conta associada àquele que viria a ser um perigoso jogo cujos principais alvos são as crianças e jovens. Desde que a primeira alusão ao desafio emergiu na rede social TikTok, milhares de réplicas foram criadas – essencialmente no Instagram, no Facebook e no Discord – para difundir os 50 desafios tipicamente estabelecidos pelos curadores, pessoas designadas pelo(s) fundador(es) do desafio, no âmbito da hierarquia do jogo, para contactar e ludibriar, via redes sociais, aquelas que poderão vir a ser vítimas. Porém, naquele desafio, mais recente, naquela altura, a vertente da extorsão sexual era acentuada.
No princípio era a baleia
Mas temos de recuar no tempo para entender a cronologia de todos estes desafios: em 2016, emergiu o “Desafio da Baleia Azul”. Este termo refere-se ao fenómeno das baleias encalhadas, supostamente suicidas. Este mamífero pode atingir as 177 toneladas e os 30m de comprimento, sendo considerada o maior animal do mundo, mas não é suicida (a causa apontada para o fim da sua vida é a poluição dos oceanos), o que torna esta analogia inválida. Por outro lado, em 2018, o “Desafio Momo” foi abordado à escala mundial. Momus (Momo em grego) é a personagem principal de duas fábulas de Esopo (famoso escritor da Grécia Antiga) e a personificação da sátira e do escárnio. No “Homem Pateta”, o nome conecta-se profundamente com o avatar que os curadores adotaram para as suas contas nas plataformas. A variação Jonathan Galindo é encarada pelos órgãos de informação internacionais como uma escolha aleatória para captar o público hispânico, embora, à semelhança de Momo – que também é uma referência a alcunhas atribuídas a meninas que entram na puberdade, uma brincadeira com a expressão “pequeno pêssego” – Galindo, em espanhol, possa dizer respeito a um “pequeno galo” e, na origem germânica da palavra enquanto apelido, a alguém que possui a característica da liderança natural.
Os curadores recorreram à utilização de fotografias captadas por Samuel Canini, pseudónimo de um cosplayer e artista plástico norte-americano que, entre 2011 e 2013, uniu as características da personagem Mickey Mouse às do Pateta, ambos do universo Disney. “Os trolls da internet apoderaram-se da minha imagem sem consentimento. O meu objetivo nunca foi ver a minha imagem ser usada para este propósito”, começou por assumir Canini em entrevista ao i, há quase dois anos. O artista disse que “nunca” foi contactado diretamente por uma conta associada ao desafio, questionando: “O que é que eles teriam para me dizer?”.
Defendeu que “comparando com tudo aquilo que se passa em redor do mundo, em 2020, esta situação parece muito inferior”, adiantando que “as pessoas querem promover o drama e o caos quando, na verdade, precisam que alguém as guie”. Considera que está aborrecido por que “os curadores não querem saber minimamente do mundo e ainda adicionam combustível às chamas”, sendo que nunca teve o propósito de “assustar ou intimidar crianças que já enfrentam um futuro incerto”. Estes alegados criminosos “não têm qualquer imaginação porque, se esse fosse o caso, teriam criado uma imagem própria”, mas não é por isso que deixará de lutar pelos seus direitos.