Apesar do coro de condenação do Ocidente à sua invasão da Ucrânia, o Kremlin não está tão isolado na arena internacional quanto seria de imaginar. Ou pelo menos tenta não estar, como demonstra o périplo em África do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, que visitou o Congo na segunda-feira. No mesmo dia em que o Kremlin anunciou que vai cortar em 20% o gás natural que chega à Europa através do Nord Stream 1 (ver página 8).
Se a crise energética na Europa até pode servir bem os objetivos do Kremlin, desestabilizando politicamente os seus adversários, o mesmo não pode ser dito de uma crise alimentar. Isso já afeta potenciais parceiros de Putin, sobretudo em África. Daí que Lavrov tente assegurar aos líderes africanos que, afinal, a culpa do aumento global do preço dos cereais não é da sua guerra na Ucrânia, mas sim das minas colocadas pelas forças ucranianas no mar Negro.
O argumento de Lavrov não é ajudado pelo facto de, ainda este sábado, as forças russas terem atingido Odessa, o principal porto da Ucrânia, apesar de recentemente terem acordo para permitir a passagem de navios carregados de cereais ucranianos. No entanto, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, aquando da sua visita ao Congo, após a visita ao Egito e antes de se dirigir ao Uganda e Etiópia, defendeu que s foi atingida “com armas de alta precisão” uma “parte separada do porto de Odessa” . E que o alvo foram um navio de guerra, bem como um depóstio de mísseis terra-mar Harpoon, algo que Kiev disputa.
Mesmo assim, o Kremlin tem trunfos na manga no que toca a cortejar países africanos. Afinal, boa parte libertaram-se das suas antigas potências coloniais com apoio de Moscovo – ainda hoje, quando nos cruzamos com elementos mais velhos das elites africanas, é provável que falem russo, sendo parte de uma geração onde muitos foram convidados a estudar na União Soviética – e Lavrov não se têm coibido de lembrar disso.
Há muito que Moscovo procura aumentar a sua influência em África. O regime de Vladimir Putin pode não ter o mesmo peso económico neste continente que tem a China ou os Estados Unidos, mas começa a competir com potências regionais como França, no que toca a poder militar.
No entanto, não é só o regime russos que escolheu esta semana para cortejar África. O Presidente de França, Emmanuel Macron, deverá visitar os Camarões, Benim e Guiné-Bissau, um país lusófono onde se sente cada vez mais influência francesa. Já o enviado especial dos EUA para o Corno de África, Mike Hammer, encaminha-se para o Egito e da Etiópia, enquanto doadores internacionais se queixam da União Africana por receber Lavrov.
Contudo, esse tipo de iniciativas diplomáticas até agora nunca impediu Moscovo de se envolver em África. O papel do Kremlin tem sido crucial na Líbia, armando e treinando as forças do senhor da guerra Khalifa Haftar. E, nos últimos anos, tanto o Chade como o Mali, a Mauritânia, o Burkina Faso – onde multidões abanaram bandeiras russas após o golpe de Estado de fevereiro, avançou na altura a Voice of America – e Níger pediram apoio militar a Moscovo, afastando-se da velha metrópole Paris.
Em Moçambique, mercenários da Wagner – uma empresa russa conhecida por fazer o trabalho sujo de Putin – combateram contra os jiadistas de Cabo Delgado, antes da chegada de sul-africanos. E na República Centro-Africana (RCA), onde até foi erguida uma estátua imortalizando os soldados russos, estes coexistem de forma tensa com o contigente de capacetes azuis da ONU, boa parte deles portugueses. Aliás, já em novembro o Nascer do SOL avançava que o caso Míriade – a descoberta que militares portugueses traficaram diamantes a partir da RCA – estava a ser utilizado pelo Kremlin para virar a população contra os capacetes azuis.
As contrapartidas para a Rússia da sua presença em África são notórias. Conseguiram obter concessões de explorações petrolíferas – uma indústria em que os russos têm enormes conhecimentos técnicos – e mineiras um pouco por todo o continente. Já o armamento de fabrico russo, que tende a ser barato, a requerer pouca manutenção e ser fácil de usar, é exatamente o que querem muitos líderes africanos, e como tal vende que nem pão quente. Sendo que Moscovo fornece quase metade do armamento comprado em África, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo.